sexta-feira, 22 de julho de 2016

A Cafeteira


Vi sob sombrios véus 
Onze estrelas nos céus, 
A lua, o sol também, 
Me reverenciando, 
E silenciando,
No meu sono e além. 

I

Ano passado fui convidado, junto com dois amigos de ateliê Arrigo Cohic e Pedrino Borgnioli, para passar alguns dias numa fazenda no interior da Normandia. O tempo, que, na nossa partida, prometia ser maravilhoso, resolveu mudar de repente, e caiu tanta chuva que os caminhos esburacados por onde andávamos eram como o leito de uma torrente.

Afundávamos na lama até os joelhos, uma camada espessa de terra gorda se grudara nas solas de nossas botas, e seu peso retardava tanto nossos passos, que só chegamos no nosso destino uma hora depois do pôr-do-sol. Estávamos exaustos; por isso, nosso anfitrião, vendo o esforço que fazíamos para reprimir os bocejos e manter os olhos abertos, tão logo acabamos de cear, nos mandou levar cada um a seu quarto.

O meu era grande; senti, ao entrar, uma espécie de calafrio, pois me parecia ter entrado em um mundo novo. De fato, tinha-se a impressão de estar na época da Regência, diante da bandeira da porta de Boucher representando as quatro estações, os móveis sobrecarregados de ornamentos rococó de muito mau gosto, e os tremós dos espelhos pesadamente esculpidos.

Nada estava fora do lugar. A penteadeira, coberta de caixas de pentes, de almofadas de pó-de-arroz, parecia ter sido usada na véspera. Dois ou três vestidos furta-cor, um leque pontilhado de lantejoulas em prata cobriam o assoalho bem encerado, e, para meu grande espanto, uma tabaqueira de esmalte aberta sobre a lareira estava cheia de fumo ainda fresco. Só notei essas coisas depois que o empregado, colocando o castiçal na mesa-de-cabeceira, me desejou um bom sono e, confesso, comecei a tremer como uma folha.

Despi-me prontamente, deitei-me, e, para acabar com tais temores bobos, logo fechei os olhos, virando-me para o lado da parede. Mas foi impossível ficar nessa posição: a cama se agitava sob meu corpo como uma onda, minhas pálpebras se retraíam violentamente. Fui obrigado a me virar e ver. O fogo que ardia lançava reflexos avermelhados no aposento, de maneira que se podia distinguir sem esforço os personagens da tapeçaria e os rostos dos retratos enfumaçados pendurados na parede. Eram os antepassados do nosso anfitrião, cavaleiros em armaduras de ferro, conselheiros de peruca e belas senhoras de rosto pintado e cabelos empoados de branco, segurando uma rosa na mão.

De repente, o fogo adquiriu um estranho grau de atividade, um clarão esbranquiçado iluminou o quarto, e vi claramente que o que eu tomara por vãs pinturas era a realidade; pois as pupilas desses seres emoldurados se moviam, cintilavam de forma singular; seus lábios se abriam e se fechavam como lábios de pessoas que falam, mas eu nada ouvia além do tique-taque do relógio e do assobio de vento de outono. Um terror incontrolável se apoderou de mim, meus cabelos se arrepiaram na testa, meus dentes se entrechocaram a ponto de quase quebrar, um suor frio inundou todo o meu corpo.

O relógio bateu onze horas.

A vibração da última badalada retiniu longamente, e quando cessou por completo...

Ah! não, não ouso dizer o que aconteceu, ninguém acreditaria em mim e me tomariam por louco. As velas se acenderam sozinhas; o fole, sem que nenhum ser visível lhe imprimisse movimento, pôs-se a soprar o fogo, chiando como um velho asmático, enquanto as pinças remexiam os tições e a pá revolvia as cinzas. Depois, uma cafeteira atirou-se da mesa sobre a qual estava colocada e dirigiu-se, mancando, para o fogo, onde se meteu entre os tições. Em alguns instantes, as poltronas começaram a se mover, e, agitando seus pés retorcidos de maneira surpreendente, vieram se acomodar em volta da lareira.

II

Não sabia o que pensar do que via; mas o que estava por ver era ainda mais extraordinário. Um dos retratos, o mais antigo de todos, de um gordo bochechudo de barba grisalha, parecido, a ponto de ser confundido, com a imagem que eu tinha do velho Sir John Falstaff, tirou, com uma careta, a cabeça de seu quadro, e, depois de muito esforço, tendo passado os ombros e a barriga rotunda por entre as estreitas hastes da moldura, pulou pesadamente no chão. Nem bem tomou fôlego e tirou do bolso de seu gibão uma chave de uma pequenez impressionante, soprou sobre ela, para se assegurar de que a cavidade estaria bem limpa, e a utilizou em todos os quadros, um após outro.

E todas as molduras se alargaram de modo a deixar passar facilmente as figuras que continham. Padrecos janotas; senhoras idosas, secas e amarelas; magistrados com aspecto grave, envoltos em grandes togas negras; jovens fidalgos de meias de seda, calções de lã preta, com a ponta da espada erguida; todos esses personagens apresentavam um espetáculo tão bizarro que, apesar do meu pavor, não pude deixar de rir.

Esses dignos personagens se sentaram; a cafeteira pulou agilmente para a mesa. Tomaram o café em xícaras japonesas de porcelana azul e branca, que acorreram espontaneamente de cima de uma escrivaninha, cada uma delas munida de um torrão de açúcar e uma colherinha de prata. Depois de tomado o café, xícaras, cafeteira e colheres desapareceram ao mesmo tempo e começou a conversa, certamente a mais curiosa que jamais ouvi, pois nenhum desses estranhos interlocutores olhava para o outro ao falar: todos tinham os olhos fixos no relógio. Eu mesmo não conseguia desviar o olhar do relógio e me impedir de seguir o ponteiro, que caminhava para a meia-noite a passos imperceptíveis.

Enfim, soou meia-noite; uma voz cujo timbre era exatamente o do pêndulo, fez-se ouvir e disse:

— Está na hora, é preciso dançar.

Toda a assembleia levantou-se. As poltronas recuaram por si mesmas; então, cada cavalheiro tomou a mão de uma dama, e a mesma voz disse:

— Vamos, senhores da orquestra, comecem!

Esqueci de dizer que o tema da tapeçaria era um concerto italiano de um lado, e do outro uma caça ao cervo na qual vários pajens tocavam trompa. Os picadores e os músicos, que até ali não haviam feito qualquer gesto, inclinaram a cabeça em sinal de assentimento. O maestro levantou a batuta, e uma harmonia viva e dançante ergueu-se dos dois lados da sala.

Dançaram primeiro o minueto. Mas as notas rápidas da partitura executada pelos músicos não combinavam com aquelas reverências graves; por isso, cada casal de dançarinos, após alguns minutos, pôs-se a fazer piruetas como um pião alemão. Os vestidos de seda das mulheres, amassados nesse turbilhão dançante, emitiam sons de natureza peculiar; dir-se-ia o barulho de asas de um voo de pombos. O vento que se engolfava por baixo os inchava prodigiosamente, de modo que pareciam sinos dobrando. O arco dos virtuoses passava tão rápido sobre as cordas, que jorravam centelhas elétricas. Os dedos dos flautistas se erguiam e baixavam como se fossem azougues; as bochechas dos picadores estavam infladas como balões, e tudo isso formava um dilúvio de notas e trinados tão apressados e de gamas ascendentes e descendentes tão intrincadas, tão inconcebíveis, que nem os próprios demônios seriam capazes de seguir tal compasso por dois minutos.

Portanto, dava dó ver todos os esforços daqueles dançarinos para acompanhar a cadência. Eles pulavam, davam cabriolas, faziam semicírculos com as pernas, realizavam jetés battus e entrechats de três pés de altura, a tal ponto que o suor, caindo-lhes da testa sobre os olhos, lhes tirava as pintas e a maquiagem. Mas seu esforço era inútil, a orquestra estava sempre três ou quatro notas a sua frente.

O relógio bateu uma hora; eles pararam. Vi algo que me escapara: uma mulher que não dançava. Estava sentada numa bergère no canto da lareira e não parecia de modo algum tomar parte no que se passava ao seu redor.

Nunca, nem em sonho, algo tão perfeito se apresentara aos meus olhos; uma pele de uma brancura deslumbrante, cabelos de um louro-acinzentado, longos cílios e pupilas azuis, tão claras e tão transparentes que através delas eu via sua alma, tão distintamente quanto uma pedra no fundo de um riacho. E senti que, se algum dia me acontecesse amar alguém, seria ela.

Precipitei-me para fora da cama, de onde até então não conseguira me mover, e me dirigi para ela, guiado por alguma coisa que agia em mim sem que eu pudesse me dar conta; e me vi junto a seus joelhos, uma das suas mãos nas minhas, conversando com ela como se a conhecesse há vinte anos. Mas, por um prodígio bem estranho, enquanto eu lhe falava, ia marcando com uma oscilação de cabeça a música que não havia cessado de tocar; e mesmo estando no cúmulo da felicidade por conversar com uma pessoa tão linda, meus pés ardiam de vontade de dançar com ela. No entanto, não ousava convidá-la.

Parece que ela compreendeu o que eu queria, pois, levantando para o mostrador do relógio a mão que eu não estava segurando, disse:

— Quando o ponteiro chegar ali, veremos, meu caro Théodore.

Não sei como ocorreu, não fiquei em absoluto surpreso ao ouvir ser assim chamado pelo meu nome, e continuamos a conversar. Enfim, a hora indicada soou, a voz com timbre de prata vibrou outra vez no quarto e disse:

— Ângela, você pode dançar com o cavalheiro, se lhe der prazer, mas sabe no que isso vai resultar.

— Pouco importa — respondeu Ângela, amuada. E passou o braço de marfim em volta do meu pescoço.

— Prestíssimo! — gritou a voz.

E começamos a valsar. O seio da jovem tocava o meu peito, sua face aveludada roçava a minha e seu hálito suave flutuava diante de minha boca. Nunca na vida sentira tamanha emoção; meus nervos estremeciam como molas de aço, meu sangue corria nas artérias como torrentes de lava e ouvia meu coração bater como um relógio preso as minhas orelhas. Entretanto, esse estado não tinha nada de penoso. Eu estava inundado de uma alegria inefável e gostaria de permanecer sempre assim, e, coisa admirável, ainda que a orquestra tivesse triplicado a velocidade, não precisávamos fazer esforço algum para segui-la. Os espectadores, maravilhados com a nossa agilidade, gritavam bravo e com toda a força batiam palmas, que não emitiam som algum.

Ângela, que até então valsara com energia e precisão surpreendentes, pareceu cansar-se de repente; pesava sobre meus ombros como se as pernas lhe tivessem faltado; seus pezinhos que, um minuto antes, roçavam o chão, só lentamente dele se desprendiam, como se estivessem carregados com um peso de chumbo.

— Ângela, você está cansada — disse-lhe eu. — Vamos descansar.

— Bem que eu gostaria — respondeu ela, enxugando a testa com o lenço. — Mas, enquanto valsávamos, todos se sentaram; só resta uma poltrona e nós somos dois.

— Que importância tem isso, meu anjo lindo? Vou colocá-la no colo.

III

Sem fazer a menor objeção, Ângela sentou-se, envolvendo-me com os braços como se fossem uma echarpe branca, escondendo a cabeça no meu peito para se aquecer um pouco, pois se tornara fria como mármore. Não sei por quanto tempo ficamos nessa posição, pois todos os meus sentidos estavam absorvidos na contemplação dessa misteriosa e fantástica criatura. Não fazia mais qualquer ideia da hora nem do lugar; o mundo real não existia mais para mim e todos os laços que me unem a ele tinham se rompido; minha alma, liberta de sua prisão de lama, nadava no vago e no infinito; eu compreendia o que nenhum homem pode compreender, os pensamentos de Ângela se revelando a mim sem que ela precisasse falar, pois sua alma brilhava em seu corpo como uma lâmpada de alabastro e os raios que saíam de seu peito traspassavam o meu de lado a lado.

A cotovia cantou, uma claridade pálida cintilou nas cortinas. Assim que Ângela a percebeu, levantou-se precipitadamente, deu-me adeus com um gesto e, após alguns passos, soltou um grito e caiu no chão. Tomado de assombro, acorri para levantá-la...

Meu sangue congela só de pensar: tudo o que encontrei foi a cafeteira quebrada em mil pedaços. Diante dessa visão, persuadido de que tinha sido o joguete de alguma ilusão diabólica, apoderou-se de mim tal pavor que desmaiei.

Quando voltei a mim, estava em minha cama, com Arrigo Cohic e Pedrino Borgnioli de pé a minha cabeceira. Assim que abri os olhos. Arrigo exclamou:

— Ah! Ainda bem! Há quase uma hora estou esfregando suas têmporas com água de colônia. Que diabo você fez essa noite? Hoje de manhã, vendo que você não descia, entrei no seu quarto e o encontrei estirado no chão, vestido à francesa, apertando nos braços um pedaço de porcelana quebrada como se fosse uma moça bonita.

— Por Deus! É a roupa de casamento de meu avô! — disse o outro, levantando uma das abas de seda de fundo rosa com ramagens verdes. — Vejam os botões de strass e filigrana dos quais ele tanto se vangloriava. Théodore deve tê-lo achado em algum canto e o vestiu para se divertir. Mas por que você se sentiu mal? — acrescentou Borgnioli. — Isso é coisa para uma amantezinha de ombros brancos; nós a pomos para descansar, tiramos seus colares, sua echarpe, e ela tem uma bela oportunidade para se fazer de dengosa.

— Foi apenas um desfalecimento que tive; sou sujeito a isso — respondi secamente.

Levantei-me, despojei-me de minha ridícula vestimenta. E depois, fomos almoçar. Meus três amigos comeram muito e beberam mais ainda; não comi quase nada, a lembrança do que se tinha passado me causava estranhas distrações. Terminado o almoço, como chovia a cântaros, não tivemos condição de sair e cada um se ocupou como pôde.

Borgnioli tamborilou marchas guerreiras nas vidraças; Arrigo e o anfitrião jogaram uma partida de damas; eu puxei do meu álbum um pedaço de pergaminho e me pus a desenhar. Os esboços quase imperceptíveis traçados por meu lápis, sem que eu sequer percebesse o que fazia, acabaram por representar com maravilhosa exatidão a cafeteira que desempenhara um papel tão importante nas cenas da noite.

— É impressionante como esse rosto se parece com a minha irmã Ângela — disse o anfitrião que, terminada a partida, me observava trabalhar por cima do meu ombro. De fato, o que ainda há pouco me parecera uma cafeteira era com toda a certeza o perfil doce e melancólico de Ângela.

— Por todos os santos do paraíso! Ela está morta ou viva? — exclamei num tom de voz trêmulo, como se a minha vida dependesse de sua resposta.

— Ela morreu há dois anos, de pneumonia, depois de um baile.

— Que pena! — respondi dolorosamente. E, contendo uma lágrima que estava prestes a cair, recoloquei o papel no álbum.

Acabava de compreender que não mais haveria para mim felicidade sobre a terra!


Conto de Théophile Gautier
Tradução de Pina Bastos


Os Melhores Contos Fantásticos - Flavio Moreira da Costa (organizador) - Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2006

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