terça-feira, 10 de abril de 2018

Astrid - Paixão Além da Morte


Como vocês bem devem imaginar, sou um cara solitário. Trabalho muito, saio pouco, e tenho pouco tempo para cuidar de minha vida pessoal. Por conta disso sou um cara naturalmente carente e que se apaixona fácil. Assumo isso sem problemas. Já fui do tipo que ligava toda hora, que enviava flores roubadas de velórios, e dava de presente ursinhos de pelúcia segurando pequenas foices de pelúcia também com bilhetinhos onde se lia “Estou mortinho de saudades”. Sim, eu sabia que isso era brega, ridículo, mas, o que eu podia fazer? Eu já fui assim, xonadinho mesmo.


Porém, notem bem o tempo verbal: FUI! Depois de meu último desastre amoroso aprendi a não me entregar tão fácil. Confesso que o meu último relacionamento tornou-me um cara mais duro e frio. E olha que de gente dura e fria eu entendo.

O nome dela era Astrid.

Ela era enfermeira e a conheci em um hospital da Noruega no auge da pandemia de gripe espanhola em 1919, num momento em que eu estava, óbvio, atolado de trabalho. Tanto que se eu cobrasse de Deus as horas extras atrasadas dessa época ficaria rico só com os juros. Eu estava dando cabo de um marinheiro sueco quando ela me puxou pela manga da túnica e perguntou com a sua voz meiga e suave “Reverendo? É o senhor?”.

Normalmente eu odeio quando me confundem com padre e já me viro putaço quando acontece. Daquela vez, entretanto, ao me virar, deparei-me com o mais lindo exemplar da frágil espécie de vocês. Quando Deus desenhou Astrid, ele não estava namorando. Ele deveria estar no Bahamas ou no Café Photo se divertindo ainda mais.

Alta, loura, traços nórdicos, o cabelo preso em trança holandesa, olhos azuis e completamente cega. Astrid era a mulher perfeita para mim. Até o fato de não poder enxergar ajudava, pois evitou que ela saísse gritando e correndo logo de cara, o que acontece em 99,8% dos meus primeiros contatos.

Disse a ela, gaguejando, e já completamente apaixonado, que não era padre, que eu estava ali só para buscar umas encomendas. Óbvio que não disse que encomendas eram. Afinal, apresentar-se como “A Morte” num primeiro encontro queima MUITO o filme.

Papo vai, papo vem, perguntei se ela estaria livre depois do serviço. “Não posso sair hoje”, ela disse, “eu cuido sozinha desse andar do hospital e há muitos doentes precisando de meus cuidados…”

Bem, acho que nem preciso dizer o que fiz. A foice cantou naquele hospital. Em cinco minutos dei conta dos moribundos do andar inteiro. Aproveitei e levei todos do andar de cima e de baixo também, só pra garantir. Empacotei geral. Ah, as pequenas loucuras do amor… Rio muito disso quando lembro hoje.

Eu e Astrid saímos naquela noite e em muitas outras depois. Até hoje muita gente acha que a gripe espanhola matava rápido por causa de uma mutação do vírus, mas não é nada disso: eu é que corria com o serviço para ficar mais tempo com ela. E tudo foi bem até que o meu segredo começou a ameaçar nossa relação. Apesar de cega, Astrid começou a desconfiar de meus horários, meus assuntos, e meus modos. Afinal, não é todo mundo que tem dois metros de altura, viaja pelo mundo inteiro e volta em segundos, e se refere a Deus intimamente como “aquele sujeitinho detestável”. Peguei-me em um conflito insolúvel: eu não encontrava um jeito de contar a verdade a Astrid sem arriscar perdê-la.

Um dia fiz um teste e perguntei a ela naturalmente, como quem não quer nada, se ela ainda me amaria caso eu fosse um ser sobrenatural cruel, assassino, e implacável. Ela não entendeu bem a pergunta, mas disse que me amaria de qualquer jeito, e que não se importaria se eu fosse um assassino demoníaco desde que fosse honesto, honrado, e não matasse sua amada e estimada tia Zelda. Assim que ela disse isso, um frio percorreu minha espinha. Pedi licença dizendo que iria ao banheiro e saí correndo pela janela da sala. Fui fazer uma ligação urgente pra Deus e pedir para ressuscitar a velha que eu tinha empacotado cinco minutos antes sem saber que era a tia dela.

Quem atendeu minha ligação foi Gabriel, já que Deus, como sempre, nunca quer falar com ninguém. O anjo estranhou o pedido, disse que não podia fazer nada. Eu implorei a ele para interceder por mim, me humilhei como nunca fiz antes por ninguém. Gabriel sacou no ato: “tem mulher no meio, não tem?”. Eu disse que sim e ele sorriu safado: “Aí, malandrão, hein? Vou falar com o Chefe e ver o que posso fazer”. Desligou. Dez minutos depois uma velha de 104 anos ressuscitava em Bergen. Foi até notícia no jornal na época.

Passado o susto, nossa relação continuou sem sobressaltos. Mesmo com a sombra do meu segredo pairando sobre nós, nosso amor e nossa paixão cresciam a cada dia. Eu e Astrid passeávamos de carro pela Europa, corríamos por campos verdejantes, ríamos muito, a vida tinha um clima de “Noviça Rebelde”, mas sem as musiquinhas xaropes. Fizemos muitos piqueniques às margens do Danúbio, onde tudo era lindo: enquanto ela colhia flores de um lado, eu colhia uns dois ou três cadáveres afogados do outro. Foi a melhor primavera de nossas vidas. Tanto que, depois de poucos meses de namoro, resolvemos nos casar.

Escolhemos juntos uma pequena capelinha em Oslo, tudo muito romântico, evento para poucas pessoas, já que a família dela se borrava de medo de mim. Muito provavelmente devido as ameaças que fiz a eles de levar um a um caso alguém contasse a verdade a ela. A única pessoa que compareceu, ironicamente, foi tia Zelda, que também se borrava de medo de mim, mas como a velha já fazia isso naturalmente por causa do Alzheimer, nunca dava para perceber exatamente o motivo pelo qual estava se borrando. Do lado dos meus convidados, quase ninguém foi também. Deus, para variar, furou alegando não ter roupa. Claro que não acreditei no sujeitinho detestável.

A cerimônia foi bonita, mas durou muito pouco. Um pequeno mal entendido, e minha total inexperiência em casamentos, estragou tudo. Quando o padre disse “até que a morte os separe”, eu achei que ele estivesse gorando nossa relação, fazendo intriga mesmo. Tomei como provocação pessoal e quis partir para a briga. Astrid não entendeu nada, mas quando o Padre falou sem querer quem eu era, todo o segredo foi para as cucuias ali.

Magoada, Astrid desistiu de tudo. Disse que até aceitava que eu fosse um abutre do além, carniceiro e implacável, mas que não tolerava que mentissem para ela, e que não queria me ver nunca mais. Eu disse a ela que isso era impossível, que a gente iria ter que se encontrar pelo menos MAIS UMA vez, mas ela não quis saber: atirou o buquê no chão e me abandonou no altar.

Só fomos nos encontrar novamente em um acidente de avião em 1969. Ela fingiu que não me reconheceu, eu também fingi que não a conheci, mas quem estava à nossa volta percebeu que ainda havia um certo calor em nossa troca de olhares. Mas também podia ser por causa da fuselagem em chamas, sei lá.

Só sei que hoje toda vez que penso em Astrid tenho vontade de varrer todas as louras da face da Terra, mas me contenho. Vocês não tem ideia, mas uma caixa de Blondor oferece mais riscos às mulheres do que apenas não acertar o ponto da cor. Daquela relação, e daqueles momentos, eu carreguei apenas a melancolia de um coração vazio.

E, só de raiva, carreguei a Tia Zelda também.

Diário da Foice, 2 de maio de 2010


Fonte: Diário da Foice - WordPress

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