terça-feira, 31 de maio de 2016

Ventre


Matei minha mãe. Sim, eu a matei com um bisturi cirúrgico. Um corte no ventre com precisão, extraindo-lhe o útero, esse órgão muscular, localizado atrás da bexiga e na frente do reto, cuja função principal é abrigar o óvulo para nutrir e protegê-lo em suas etapas de embrião e feto. Foi meu primeiro crime, a primeira vez que senti o sangue quente em minhas mãos, prazer que cultivaria por muitos anos.

Desde criança, ela me destratava, me chamava de guri imprestável, porco, nojento. Dizia que meu pai dava mais atenção ao filho que à esposa. Coitado dele, estava sempre em congressos viajando, era médico. Acabei com a vida do homem. Não queria prejudicá-lo, mas foi a única forma de me livrar dela. Arquitetei o plano em detalhes, sabia até a hora em que o “doutor” ia entrar em casa naquele dia. Ele se matou na prisão, jurando amar a “mulher”. Foi condenado por homicídio triplamente qualificado. Os vizinhos escutaram seus gritos enlouquecidos e chamaram a polícia, que encontrou o pai com o bisturi na mão, histérico, banhado num mar vermelho.

Eu estava sentado num canto da sala; assim me encontraram. Fui manchete dos jornais. O filho de doze anos, órfão de mãe, ausente de pai. Fui criado por um tutor após o assassinato. Não localizaram o útero. Eu o escondi, banhado em formol, com as técnicas que aprendi estudando os livros de medicina da biblioteca de casa. Sempre fui autodidata. O útero está na minha coleção pessoal. O ventre daquela vaca foi arrancado para que ela não pudesse mais ter filhos. E, consequentemente, nenhum sinal de vida.

Na fria sala da delegacia, olho espantado as fotos em cima da mesa. As vítimas, mulheres de trinta anos, loiras, olhos azuis; estabelecendo um padrão, foram encontradas sem útero, costuradas cirurgicamente, sem nenhum sangue. Que psicopata teria intenção de deixar suas vítimas em perfeito estado, sem a parte essencial da procriação? O que ele estaria fazendo com isso? Experiências? Releio as anotações, observo a postura das vítimas, vinte e cinco delas, uma a cada bimestre, todas com uma rosa vermelha encontrada sobre o sexo, sem sinal de estupro. Há quase cinco anos o persigo. Como delegado deste distrito, não desisto de buscá-lo. Queria conhecê-lo ao menos para entender seu objetivo. Quando analiso esse caso, lembro-me de minha mãe, coitada, que morreu tão jovem, com a idade das mulheres congeladas nessas fotos.

Quero livrar o mundo do caos antes do juízo final. Essas vagabundas que andam na noite, dançando, exibindo seus corpos – não merecem viver. Minha mãe fazia assim: bastava meu pai viajar a trabalho e ela caía na noite, voltava fedendo a cigarro, com cheiro de sexo no corpo. E me batia, aquela puta, me esbofeteava a cara quando eu perguntava aonde ela tinha ido:

— Não te interessa, guri. Tu não vais contar nada para o teu pai. Senão, eu te mato!

Uma noite, ela me disse isso pela última vez. Eu a cortei em forma de cruz, como se fizesse um haraquiri, enfiei a mão e puxei aquele pedaço redondo de carne quente.

Hoje, ando pela noite e conheço várias mulheres iguais a ela. As solteiras, sem filhos, acho que têm o direito de se divertir. As vagabundas que me comentam que o filho está dormindo em casa, eu envolvo, seduzo, levo para o meu apartamento. Lá, a sala cirúrgica está preparada. Assim que uma entra, eu tapo a boca e o nariz dela com formol. Não me contento em extrair o útero; deixo ela morrer. O filho que espera a puta em casa será cuidado por algum parente, alguém que se importe mais com ele do que uma vaca da noite. Faço questão de deixar o corpo em algum gramado da cidade para que todos vejam. Coloco uma rosa, entre o ventre e o sexo, como uma metáfora; o maior símbolo dos amantes, só para lembrar os momentos de paixão que trazem ao mundo filhos indesejados.

Minha vida está neste distrito. Ando tão cansado que, muitas vezes, mal lembro onde estive. Vivo apático, tento mostrar punho quando meus subordinados estão à volta. Desloquei uma equipe para prender esse assassino. Não tenho tempo para sexo, para prazeres. Já não sei mais o que é isso. Estou quase assexuado. Também não lembro se algum dia senti prazer com uma mulher. Não sou homossexual. Mas o cansaço, o estresse do trabalho, me deixa sem vontade de nada. Tomo café compulsivamente para ficar acordado. Fumo duas carteiras de cigarro por noite. Sou elogiado pelos colegas, considerado por meus superiores, adorado na mídia. Estou em alta na sociedade, influencio quem eu quiser. Faço meu trabalho, tenho a ética de não abusar do poder que me foi dado.

“O Colecionador de Ventres” resolveu me provocar. Após a entrevista que concedi na televisão, ele agora me manda um buquê de rosas por semana. Estaria apaixonado por mim? Ou ele apenas deixa pistas querendo ser encontrado? Eu tomo cuidado quando estou em público. Tento resguardar minha vida. E, principalmente, quero preservar a das futuras vítimas. Se eu não mobilizasse essa busca frenética, ele não teria mais limites, as mortes seriam incontáveis.

Aquele delegado imbecil resolveu colocar a boca na mídia. Acha que vai conseguir me localizar fazendo escândalo. Não sabe o bem que estou fazendo à sociedade, livrando o mundo dessas mulheres sujas. Onde está escrito o que é bom ou mau, certo ou errado? Foi essa sociedade medíocre que decretou isso. Não conseguem limpar nem a própria imundície, quanto mais purificar alguma coisa. Eu só faço o meu trabalho. Uma a menos para deixar as crianças abandonadas no mundo. Quando caminho à noite em direção aos bares, vejo as crianças atiradas nas ruas, passando frio e fome. De dia, estão nas sinaleiras, pedindo esmolas para abastecer a necessidade de álcool das mães bêbadas em casa. Eu faço justiça com meu próprio bisturi, o mesmo que roubei de meu pai há muitos anos. Ele continua intacto, a lâmina fria, cortante. Aquele delegadozinho, que não tem nem a coragem de mostrar a cara na tevê, acha que pode fazer o que quer. Vou perturbar a vida dele.

Mandarei uma flor ao dia, não... quem sabe um buquê por semana?

Ele está passando dos limites. Não contente em me mandar rosas, deixa mensagens escritas a sangue destinadas a mim – primeiro, perto das vítimas e, agora, mais abusado que nunca, sujou a minha sala na delegacia escrevendo na parede: “Moretti, sua bicha! Pecado é privar-se do prazer!”. Ele resolveu fazer isso depois que dei uma entrevista na tevê falando que o que ele fazia com as vítimas era um pecado, um sacrilégio.

Cinco anos de faculdade e eu optei pelo Direito Penal, talvez por culpa de não ter impedido a morte da minha mãe. Resolvi interceder em outros crimes. Quinze anos nesta delegacia e nunca vi um caso parecido. Esse homem acha que está contribuindo para a sociedade, que nada faz de errado. Quer que eu o encontre – não para ser preso, mas para nos enfrentarmos. Deixou um último bilhete com um endereço, pede que eu vá sozinho. Decido ir sem minha equipe, revoltado por ter sido chamado de veado. Coloco a arma na cintura e saio em sua busca.

Há algumas horas, deixei um bilhete para que ele viesse ao meu encontro. É a única forma de descobrir quem eu sou, ou assumir quem realmente ele é.

Essa veiculação toda, notícias no jornal; estão me chateando, me chamam de “Colecionador de Ventres”. Eu não os coleciono, apenas os guardo em meu apartamento, enfileirados em prateleiras, para se conservarem intactos, sem função. Devo ter uns cinquenta deles. Vou sair e deixar aquele delegadozinho de merda passear pelo meu apartamento e fuçar tudo o que deseja. Quero ver se, depois de visitar este lugar, ele não vai me dar razão, parar de questionar meus atos.

Paro o carro em frente ao prédio. Olho para os lados e verifico minha arma. Hoje é o dia do fim. Vou matá-lo assim que o vir. Não quero nem levá-lo preso. Esses psicopatas de bosta só incomodam. Não vão presos, alegam insanidade e só dão despesa. Entro no prédio, subo as escadas. Estou em frente ao seu apartamento, a porta está apenas encostada. O cheiro de formol é forte e nauseante. As estantes na sala distribuem os troféus lado a lado. Encontro uma sala com material cirúrgico: bisturi, tesoura, linha e uma maca com lençol branco.

No quarto, uma fita de vídeo em cima da cama, etiquetada, com meu nome. Assisto a uns quinze crimes documentados. Ele filmou quase todos. Nauseado, vomito. Não acredito no que vejo.

Vim decidido a matá-lo. Vou até o espelho e me olho incrédulo. Em poucos segundos, eu o matarei. Encosto a arma na cabeça. Atiro.

por Roberta Larini


Ficção de Polpa - Volume 1 - Organizado por Samir Machado de Machado - 2012.

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