O mundo acabou. Não que o planeta tivesse se desintegrado. Todas as formas de vida visíveis estavam exterminadas. Ana era a última sobrevivente. Fechada em seu apartamento, ela viu tudo morrer à sua volta. Viu anunciarem na televisão que o terrível vírus estava solto na atmosfera, matando pessoas, animais e plantas em segundos. Viu o apresentador do telejornal, ao vivo e em cores, sangrar pelos poros e morrer em frente às câmeras.
Permaneceu sentada no sofá até a telinha passar a transmitir um chiado fora do ar. Ligou o rádio: estática estalando em todas as estações. Olhou pela janela: pessoas sangrando e morrendo em desespero. Ligou para os amigos: não encontrou ninguém. “Todos mortos”, pensou. Então, os telefones emudeceram e a energia elétrica foi cortada. O silêncio absoluto de um mundo sem vida penetrou em seu corpo e foi aí que ela percebeu que estava só no planeta. Ana era amiga da solidão. Desde a morte do filho, praticamente não saía do apartamento. Sua redoma de vidro.
Até quando sobreviveria com seus estoques de bolachas e água mineral? Essa era a grande questão do presente. Lacrada naquele apartamento decadente, não tinha sido atingida pelo vírus. Mas até quando?
Caiu a noite e com ela a escuridão total. A lua andava sumida. Nuvens negras pairavam. Sentada à janela, Ana refletia sobre o estúpido fim do planeta. Nada de guerras atômicas ou interplanetárias. Apenas um animalzinho invisível que destruiu os outros todos. Criado pelo mais estúpido dos animais, em um de seus estúpidos laboratórios.
O velho relógio de parede bateu doze vezes. Era a meia-noite do fim do mundo. Pensou sobre o tempo e a ausência de sentido dele naquele instante. Quando a última badalada soou, um calafrio percorreu Ana até a medula: uma batida fraca e vacilante vinha da porta da frente. Ela imaginou tratar-se de delírio. Então, tornou a ouvir a batida. Dessa vez mais forte. Acendeu a vela da Virgem Maria e colou o ouvido à porta. O som leve da mão, se chocando contra a madeira, repetiu-se, quase em câmera lenta.
— Quem é? — perguntou ela, com um fio de voz.
— Sou eu, mamãe.
Aquela voz de criança gelou o sangue de Ana. Era seu filho. Impossível! Seu Cristian morrera havia dois anos. Estava louca, sem dúvida. Gritou para ele ir embora, deixá-la em paz.
— Abre mãe, por favor. Está frio aqui fora.
O resto de razão remanescente dizia para ela se afastar dali. Sentimentos que não entendia moveram suas mãos e abriram a porta. Lá estava ele, iluminado pela luz bruxuleante: Cristian, seu menino, lindo como na noite em que morrera. Possessa por emoções, ela puxou o garoto contra o corpo e o abraçou com força. Num átimo, aquele abraço maravilhado transformou-se num momento de horror.
Ana sentiu a pele de Cristian desmanchar-se feito uma espuma pegajosa; o cheiro de fezes e enxofre e o frio cadavérico. Afastou-se dele, num gesto de repulsa. O rosto do garoto era o focinho de um monstro. Ele soltou uma gargalhada sinistra, escancarando os dentes podres.
— Você não é meu filho! — Ana tremia. — Quem é você?
A criatura odiosa aproximou-se da mulher e, em meio a vômitos, começou a falar:
— Quem sou eu? — A voz soava como a dos demônios nos filmes. — Criatura tão patética. Tem a petulância de perguntar quem sou eu. Porém, sua agonia me diverte, assim como de toda essa espécie de insetos pretensiosos chamados de humanos.
Pavor e nojo se confundiam em Ana. À medida que a monstruosidade falava, crescia de tamanho e, ao mesmo tempo, pedaços decompostos se desmanchavam em seu corpo e se espatifavam pelo chão.
— Quem sou eu? O tudo e o nada. O infinito. Habito este planeta infeliz muito antes dos dinossauros. Os antigos, que viram o mundo amadurecer, já me cultuavam em suas escrituras sagradas. Eu era conhecido como Nyarlathotep, o Rastejante Caos. Isso muito antes de eu criar, de um pedaço de meus excrementos, essa subespécie da qual você faz parte. Isso mesmo. Você ouviu bem. Eu os criei. Eu sou o que está descrito nas suas miseráveis escrituras como O Criador. Criei para gozar com seu sofrimento. Matar o tédio com sua dor. Porém, suas capacidades limitadas já não me emocionam mais. Resolvi acabar com a vida neste planeta. Eu os criei. Assim tenho o direito de fazer com vocês o que bem entender. O vírus? Já o exterminei. Meu objetivo é o fim da vida. Por que eu apareci aqui na forma de seu filho?
A mulher sufocou de medo. A criatura lia seus pensamentos.
— Impressionada? — o monstro prosseguia — sim, eu sei o que você está pensando. Quando você rezava em frente a essa ridícula santa, era para mim que você implorava. Chorando de modo desprezível para que seu filho fosse para um lugar melhor. O Paraíso! — E riu, com escárnio. — Seu filho não existe mais. Virou um nada, assim como todos os que habitaram este inferno. Apareci na forma de seu filho, pois queria vê-la sofrer. Achou que podia me enganar? Trancada neste apartamento julgava poder evitar o inevitável? É muita pretensão para verme tão vil. Eu poderia esmagá-la feito um inseto. Não. Desgraçada que é, deve sofrer. Vai morrer. Achava que não? Vai morrer sabendo que a culpa pela morte de seu filho foi sua. Sua e de mais ninguém.
Ana começou a sangrar pelos olhos. Perdeu as forças. E, finalmente, a vida se extinguiu do planeta.
por Fernando Mantelli
Ficção de Polpa - Volume 1 - Organizado por Samir Machado de Machado - 2012.
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