Minha primeira lembrança é ter aberto a porta. Parado, com os dois pés sobre o tapete com um irônico “Bem-vindo”, estava um fígado. Mesmo para um órgão do corpo humano, ele não tinha boa aparência, parecendo judiado pela vida. Era um pouco maior que eu e trazia uma das mãos escondida atrás de seu corpo gelatinoso.
— Em que posso ajudá-lo? — perguntei.
— Não me reconhece? — replicou o fígado.
Olhei para ele cuidadosamente e respondi:
— Não, acho que não. Parece ser um fígado completamente acabado, mas acho que nunca vi você em toda a minha vida.
Meu convidado parado à porta pareceu soltar um suspiro desolado. Em seguida, olhou diretamente para os meus olhos. Jamais havia sido encarado por um fígado antes. Um leve tremor percorreu meu corpo.
— Tudo bem, eu já esperava isso — comentou o órgão. — Eu vim aqui para me vingar de todos os maus-tratos que já recebi. Vim aqui para matá-lo.
Fiquei sem saber o que fazer ou responder. Por instantes, tanto eu quanto o fígado permanecemos na mesma posição. Lentamente, ele começou a mover sua mão escondida. Assim que enxerguei o reflexo da luz na faca que ele trazia, dei-me conta de que a ameaça era verdadeira. Ele estava ali para me matar.
Rapidamente, fechei a porta. Mas o fígado jogou-se na minha direção, dando com o ombro na porta. Sua força era descomunal. Fui ao chão, enquanto ele entrava na sala.
Encontrava-me estirado no solo, com um fígado de quase dois metros, segurando uma faca e com raiva mortal de mim, parado na minha frente.
— Por que você quer fazer isso comigo? — perguntei, desesperado.
— Por quê? Por quê? Você ainda tem a coragem de perguntar isso? — exclamava o fígado, completamente alterado.
Notei que tinha feito a pergunta errada. Ele prosseguiu, gritando:
— Que tal anos e anos sem a menor preocupação comigo? Noites intermináveis regadas a cerveja, uísque e tudo o que tivesse álcool? Por que toda essa falta de consideração comigo?
— Mas eu...
— Cala a boca! Cala essa maldita boca! — ele gritava, segurando a faca a poucos centímetros de meu pescoço. Eu estava com medo. Ele respirou fundo e perguntou com calma: — Por que você nunca fumou?
Fiquei pasmo com a questão dele. Tentei disfarçar meu medo e respondi com a voz ainda trêmula:
— Não sei, nunca tive vontade.
— Então! Seu filho de uma puta insensível. Por que o pulmão você sempre tratou bem? Por que cuidava do coração? Rim, pâncreas, tudo funcionando direitinho. Tudo com tratamento VIP. Mas não eu. Não o fígado. Pra mim, a menor bola. Pisando, chutando, maltratando todos os dias. Mas não hoje. Hoje é a minha vez.
Tive que concordar com o fígado parado diante de mim. Não podia culpá-lo por tomar essa atitude. Havia sido negligente com ele e, talvez, merecesse essa retaliação.
— Desculpe, você tem toda razão — tentei ser humilde e reconhecer meu erro.
Ele não disse nada, mas não tinha mais o olhar de ódio. Achei que o momento era favorável e continuei:
— Sei que não dei a você o melhor tratamento do mundo, mas...
— Ah, mas você é hipócrita mesmo. Não deu “o melhor tratamento do mundo”? Olhe pra mim! Estou cheio de cicatrizes, de marcas. Você matou minhas células. Pareço ter o dobro da idade dos outros órgãos. Você acha que isso me faz sentir como? Em conversas com meus companheiros do corpo, sou deixado de lado, tratado como pária. Como um excluído. Até o apêndice, que não serve pra nada, tem mais respeito que eu junto aos outros órgãos. Ah, como eu lhe odeio! Mas isso termina hoje.
O fígado veio para cima de mim. Tentou dar-me uma facada, mas desviei com agilidade. Pus-me em pé e saí correndo pela porta.
Olhei para trás, esperando que ele não aparecesse. Torcia para que ficasse com vergonha de sair correndo na rua. Afinal, não é todo dia que se enxerga um fígado com uma lâmina na mão tentando tirar a vida de seu hospedeiro.
Atravessei a avenida, escapando de ser atropelado por dois carros. Não olhava para trás. Corria com todas as minhas forças. Foi quando descobri que vergonha não é uma característica hepática. Cego pelo ódio, ele me perseguia tenazmente. Esbravejava:
— Volte, seu desgraçado! Vai aprender a me respeitar!
Não sabia a que distância estava dele. Corria pela calçada, desviando das pessoas. Tinha a consciência de que não poderia ficar ali por muito tempo. Teria que achar outro caminho. Virei para a direita, abri a porta do primeiro estabelecimento e entrei.
Era um bar no estilo de um pub irlandês. Nas mesas, no balcão e até em pé, pessoas bebendo cerveja e chope. Percebi que tinha errado em minha escolha, mas agora era tarde. Precisava me esconder.
Corri para uma mesa no canto mais escuro do local. Nesse momento, ouvi a porta se abrir com um estrondo. O fígado entrara.
Sua primeira reação foi de pânico. Olhava em volta de si e enxergava as pessoas bebendo com prazer, deliciando o malte da cerveja. Todos, sem exceção, destruindo seus fígados.
O fígado que me perseguia indignou-se:
— Seus assassinos! Sádicos! Psicopatas! Vou matar cada um de vocês! Arrancarei as unhas dos pés e das mãos de seus filhos – esbravejava, apontando a faca para os frequentadores do local.
Logo em seguida, a expressão da sua face mudou completamente. O fígado entristeceu-se e caiu de joelhos no chão. Para a surpresa de todos, começou a chorar.
Foi uma cena tocante. Jamais havia visto um órgão do corpo humano derramar lágrimas, exceto as próprias glândulas lacrimais. Compungido, ergui-me do meu pretenso esconderijo e me dirigi ao fígado chorão.
— Calma, não fique assim – disse a ele, em tom alentador.
Ele olhou para o meu rosto e falou:
— Não entendo o que eu fiz pra merecer isso. Não entendo.
Sentindo-me culpado por deixá-lo daquele jeito, cheguei mais perto para oferecer consolo. Ajoelhei-me no chão e envolvi o fígado em um abraço.
Nesse exato instante, senti uma dor aguda na barriga. Afastei-me e vi o fígado segurando a faca cheia de sangue.
Ele conseguira me esfaquear. Fui ingênuo demais, caindo em sua armadilha. Pelo pouco que conhecia do corpo humano, dei-me conta de que ele havia me apunhalado na altura do fígado.
Mais do que uma vingança, aquilo era também um suicídio. Um ato de misericórdia.
Enquanto eu, aos poucos, desfalecia, com sangue pelo corpo, vi meu algoz esboçar um sorriso. Ele sangrava a partir de um gigantesco corte que atravessava todo o seu corpo.
Abraçou-me. Tombamos juntos para meu lado direito, com os últimos suspiros em um ritmo cada vez mais lento. Com os olhos quase fechando, consegui vislumbrar os frequentadores do pub.
Alheios ao que acontecia, continuavam deliciando-se com suas bebidas.
por Silvio Pilau
Ficção de Polpa - Volume 1 - Organizado por Samir Machado de Machado - 2012.
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