Nuremberg não era tão visitada na época quanto passou a ser desde então. Irving ainda não estava em cena com o Fausto, e a grande maioria dos viajantes mal ouvira falar na velhacidade. Estando minha esposa e eu na segunda semana de nossa lua de mel, era natural que quiséssemos a companhia de outra pessoa, de forma que quando o animado desconhecido Elias P. Hutcheson, proveniente de Isthmian City, Bleeding Gulch, Maple Tree County, Nebrasca, apareceu na estação de Frankfurt e comentou casualmente que estava indo visitaro diacho da cidade mais velha e matusalênica que existia nas Oropias, mas que suspeitava que fazer uma viagem tão longa sozinho pudesse ser o bastante para mandar qualquer cidadão ativo e inteligente para a ala dos melancólicos de uma casa de alienados,aproveitamos a deixa daquela sutil indireta e sugerimos unir forças. Descobrimos, ao trocar impressões mais tarde, que tínhamos os dois pretendido falar com certa reserva ou hesitação para não parecermos ávidos demais, o que não seria uma indicação muito lisonjeira do sucesso de nossa vida de casados. O efeito, contudo, foi inteiramente arruinado pelo fato de nós dois começarmos a falar ao mesmo tempo, calarmo-nos simultaneamente e logo depois começarmos a falar juntos outra vez. Enfim, não importa de que forma, o caso é que o convite foi feito e Elias P. Hutcheson tornou-se nosso companheiro de viagem. Logo, logo Amelia e eu sentimos o resultado benéfico dessa inclusão; em vez de brigarmos, como vínhamos fazendo, descobrimos que a influência inibidora de uma terceira pessoa era tal que passamos a aproveitar toda e qualquer oportunidade para namorar em cantos escondidos. Amelia conta que desde então, movida por essa experiência, vem aconselhando todas as suas amigas a levarem um amigo para a lua de mel. Bem, nós “fizemos” Nuremberg juntos e posso dizer que nos divertimos bastante com os comentários espirituosos de nosso amigo transatlântico, que, por seu jeito exótico de falar e maravilhoso estoque de aventuras, bem podia ter saído de um romance. De todos os pontos de interesse da cidade, deixamos para visitar por último o Kaiserburg, e no dia marcado para a visita circundamos a pé a muralha externa da cidade pelo lado oriental.
Situado no alto de um rochedo que domina a cidade, o Kaiserburg é protegido ao norte por um fosso profundíssimo. Nuremberg teve a sorte de nunca ter sido saqueada; tivesse sido, por certo não estaria em tão perfeito estado de conservação como está atualmente. O fosso não é usado há séculos, e agora sua base está coberta de canteiros de ervas de chá e de pomares, alguns com árvores de tamanho bastante respeitável. Enquanto contornávamos a muralha, caminhando sem pressa sob o sol quente de julho, volta e meia parávamos para admirar as paisagens que se estendiam diante de nossos olhos, em especial a enorme planície coberta de vilas e povoados e demarcada por uma linha azul de colinas, como uma paisagem de Claude Lorraine. De lá, nossos olhos sempre se voltavam com renovado prazer para a cidade em si, com sua miríade de graciosas cumeeiras antigas e vastos telhados vermelhos pontilhados de lucarnas, camada sobre camada. À direita, a uma pequena distância, erguiam- se as torres do Kaiserburg e, mais perto ainda, soturna, a Torre de Tortura, que era, e talvez ainda seja, o lugar mais interessante da cidade. Por séculos, a fama da Virgem de Ferro de Nuremberg foi sendo transmitida de geração em geração como um exemplo dos horrores de crueldade de que o homem é capaz. Havia muito ansiávamos por conhecê-la e, agora, enfim, lá estava a sua casa.
Numa de nossas paradas debruçamo-nos sobre o muro do fosso e olhamos lá para baixo. Os canteiros pareciam estar quase vinte metros abaixo de nós, e o sol que se derramava sobre eles produzia um calor intenso e imóvel como o de um forno. Mais além, erguia-se a lúgubre muralha cinza, que parecia elevar-se numa altura sem fim e estender-se à direita e à esquerda até sumir de vista nos ângulos do bastião e da contraescarpa. Árvores e arbustos coroavam a muralha e, mais acima, avultavam as casas majestosas, em cuja imponente beleza o Tempo só fizera impor a mão da aprovação. O sol estava quente e nós com preguiça; o tempo era todo nosso, e nos deixamos ficar, debruçados sobre o muro. Bem embaixo, avistamos uma bela cena: uma enorme gata preta tomava sol espichada no chão, enquanto um minúsculo filhotinho preto brincava e cabriolava em volta dela. A mãe abanava o rabo para lá e para cá para que o filhotinho tentasse pegá-lo, ou levantava as patas e empurrava o animalzinho para trás como estímulo à brincadeira. Eles estavam bem próximos do muro, e Elias P. Hutcheson, no intuito de colaborar com a brincadeira, inclinou-se e arrancou do muro uma pedra de tamanho mediano.
“Olhem!”, disse “vou jogar esta pedra perto do filhote e os dois vão ficar tontos tentando descobrir de onde ela veio.”
“Ah, tome cuidado”, disse minha esposa, “o senhor pode acabar acertando o bichinho!”
“Eu? Eu não, dona”, disse Elias P., “pois se eu sou mais delicado do que uma cerejeira do Maine! Valha-me Deus! Eu seria tão incapaz de machucar aquela pobre criaturinha quanto de escalpelar um bebê. Pode apostar sua roupa do corpo nisso! Olhe, vou soltar a pedra longe do muro, que é pra ela não cair perto do bichano.”
Assim dizendo, inclinou-se para a frente, esticou bem o braço para o lado de fora e deixou a pedra cair. Pode ser que exista alguma força de atração que puxe os corpos menores de encontro aos maiores ou pode ser também — o que é mais provável — que o muro não fosse reto, e sim mais largo na base, e nós, de cima, não tivéssemos notado a inclinação; o fato é que a pedra caiu, com um baque nauseante que veio subindo até nós pelo ar quente, bem na cabeça do filhote, estraçalhando seus miolinhos na mesma hora. A gata preta rapidamente olhou para cima e vimos seus olhos, que mais pareciam chamas verdes, cravarem-se por um instante em Elias P. Hutcheson. Em seguida ela voltou a atenção para o filhote, que, a não ser por um leve tremor dos membros pequeninos, jazia imóvel no chão, enquanto um fio vermelho de sangue escorria de uma ferida aberta. Com um gemido estrangulado, como o que um ser humano poderia soltar, a gata se inclinou sobre o filhote, lambendo-lhe as feridas e miando. De repente, pareceu se dar conta de que ele estava morto e mais uma vez olhou para o alto, na nossa direção. Nunca vou me esquecer daquela visão, pois a gata parecia a perfeita encarnação do ódio. Seus olhos verdes faiscavam de forma sinistra e os dentes brancos e afiados pareciam quase reluzir em meio ao sangue que lhe besuntara a boca e os bigodes. Rangeu os dentes e arreganhou as garras, que saltaram hirtas de dentro de todas as suas patas. Em seguida, lançou-se desatinada muro acima como para nos alcançar, mas,perdendo o impulso, caiu para trás, o que contribuiu para piorar ainda mais sua aparência terrível, pois caiu em cima do filhote e, quando se levantou, tinha o pelo preto coberto de miolos e sangue. Amelia perdeu a cor e as forças e tive de retirá-la do parapeito e afastá-la do muro. Havia um banco ali perto, à sombra de uma árvore frondosa, onde fiz com que se sentasse para recompor-se. Depois voltei para perto de Hutcheson, que olhava imóvel para a gata enraivecida lá embaixo.
Quando parei a seu lado, ele disse:
“Bom, acho que essa deve ser a fera mais bravia que já vi na vida, tirante só quando uma selvagem apache estava enfuriada com um mestiço em quem eles puseram o apelido de Estilha por causa do tratamento que ele deu pro piá dela, que ele roubou num saqueio, só para mostrar o quanto ele estava agradecido pelo modo como eles tinham aplicado a tortura do fogo na mãe dele. Ela tinha esse mesmo tipo de carantonha tão entranhada na cara dela que parecia até que tinha nascido assim. Ela seguiu o Estilha por mais de três anos, até que os guerreiros pegaram ele e entregaram pra ela. Mas eles disseram que nunca nenhum homem, nem branco nem índio, tinha demorado tanto tempo pra bater as botas debaixo das torturas dos apaches. A única vez que vi aquela selvagem sorrir foi quando acabei com a raça dela. Cheguei ao acampamento no tempo justinho de ver o Estilha abotoar e posso dizer que ele também não ficou triste de ir, não. Era um cidadão tinhoso, e mesmo que eu não pudesse nunca mais apertar a mão dele por causa daquela história do piá — porque foi um troço feio, no duro que foi, e ele devia ter se comportado feito um homem branco, porque era isso que ele parecia ser —, eu vi que as contas dele estavam mais do que acertadas. Deus que me perdoe, mas peguei um pedaço do couro dele de um dos mastros em que ele tinha sido esfolado e mandei fazer uma carteira. Aliás, ela está bem aqui!” — concluiu, batendo no bolso interno do paletó.
Enquanto ele falava, a gata continuava em seus esforços frenéticos para escalar o muro. Tomava distância e depois saía em disparada muro acima, às vezes alcançando alturas inacreditáveis. Parecia não se importar com os tombos feios que levava depois de cada tentativa, lançando-se sempre com novo vigor à empreitada; e a cada tombo sua aparência ficava ainda mais terrível. Hutcheson era um homem de bom coração — minha esposa e eu já havíamos testemunhado pequenos atos de generosidade seus tanto com animais quanto com pessoas — e parecia preocupado com o estado de fúria em que a gata se encontrava.
“Ora, ora!”, disse ele, “não há como negar que essa pobre criatura parece bastante desesperada. Pronto, pronto, bichana, tudo não passou de um acidente, apesar de que nada vai trazer o seu filhote de volta. Diacho! Deus sabe que eu não queria que isso acontecesse! Só serve para mostrar o que um idiota desastrado é capaz de fazer quando tenta brincar! Parece que sou estabanado demais até para brincar com um gato. Diga, coronel (ele tinha o afável costume de distribuir títulos livremente), sua esposa não está zangada comigo por causa dessa infelicidade, está? Eu não queria de jeito nenhum que uma coisa dessas acontecesse.”
Hutcheson foi até Amelia e desculpou-se profusamente, e ela, com sua amabilidade habitual, apressou-se em assegurar-lhe que entendia perfeitamente que fora um acidente.
A gata, não vendo mais o rosto de Hutcheson, afastara-se do muro e estava sentada no meio do fosso, apoiada sobre as patas traseiras, como que pronta para saltar. De fato, no mesmo instante em que o viu, saltou, com uma fúria cega e desatinada que teria sido grotesca se não fosse tão assustadoramente real. Não tentou escalar o muro como das outras vezes, mas simplesmente atirou-se na direção de Hutcheson como se o ódio e a fúria pudessem emprestar-lhe asas para atravessar a enorme distância que havia entre os dois. Amelia, como qualquer mulher em seu lugar, ficou muito preocupada e disse a Elias P. em tom de advertência:
“O senhor precisa tomar muito cuidado. Esse animal tentaria matá-lo se estivesse aqui. Está escrito nos olhos dela que ela quer assassiná-lo.”
Hutcheson soltou uma gargalhada bem-humorada.
“Desculpe, dona, mas não posso deixar de rir. Imagine um homem que já lutou contra ursos e contra índios tomando cuidado para não ser assassinado por uma gata!”
Quando a gata ouviu a risada de Hutcheson, sua atitude pareceu se transformar. Não tentou mais dar saltos nem escalar o muro, mas saiu andando em silêncio e, sentando-se de novo ao lado do filhote morto, começou a lambê-lo e a acariciá-lo como se ainda estivesse vivo.
“Está vendo!”, observei. “É o poder de um homem verdadeiramente forte. Mesmo esse animal, em meio a sua fúria, reconhece a voz de um líder e se curva diante dele!”
“Como uma selvagem!”, foi o único comentário de Elias P. Hutcheson, enquanto retomávamos o caminho ao redor do fosso da cidade. De vez em quando olhávamos por cima do muro e, sempre que o fazíamos, víamos a gata nos seguindo. No início ela voltava a todo momento para perto do filhote morto, mas quando a distância se tornou grande demais pegou-o na boca e assim seguiu. Depois de algum tempo, no entanto, abandonou a ideia, pois vimos que ela nos seguia sozinha; tinha, obviamente, escondido o corpo em algum lugar. Amelia, diante da persistência da gata, foi ficando cada vez mais aflita e mais de uma vez repetiu sua advertência ao americano, mas ele sempre ria e achava graça, até que, ao perceber que Amelia estava começando a ficar nervosa, disse:
“Eia, dona, não precisa ter medo por causa da gata. Eu ando sempre prevenido, ora se não!”, declarou, batendo no coldre onde guardava a pistola, na parte de trás da região lombar.
“Arre, se é pra dona ficar nervosa desse jeito, prefiro dar logo um tiro na criatura aqui mesmo e correr o risco de a polícia abordar um cidadão dos Estados Unidos por carregar uma arma contra a lei!” Enquanto falava, olhou por cima do muro, mas a gata, ao vê-lo, soltou uma espécie de rosnado, correu para um canteiro de flores altas e se escondeu. Hutcheson continuou: “Raios me partam se essa criatura não tem mais noção do que é melhor para ela do que muito cristão. Acho que foi a última vez que pusemos os olhos nela. Aposto que agora vai voltar para aquele filhote arrebentado e fazer um funeral particular para ele, todinho dela!”.
Amelia achou melhor não dizer mais nada, temendo que Hutcheson, numa tentativa equivocada de ser gentil, cumprisse a ameaça de atirar na gata. Assim, continuamos em frente e atravessamos a pequena ponte de madeira que levava ao portal por onde se chegava à íngreme pista pavimentada que ligava o Kaiserburg à Torre de Tortura pentagonal. Ao atravessar a ponte, vimos a gata de novo, bem embaixo de nós. Quando nos viu, ela pareceu encher-se outra vez de fúria e fez esforços desesperados para subir o muro alcantilado. Vendo-a lá embaixo, Hutcheson riu e disse:
“Até mais ver, minha velha. Sinto muito ter ferido seus sentimentos, mas com o tempo você vai superar isso. Adeus!” E então nós três atravessamos a longa e sombria arcada e chegamos ao portão do Kaiserburg.
Quando nos vimos novamente do lado de fora, depois da visita àquele belíssimo lugar antigo que nem mesmo os bem-intencionados esforços dos restauradores góticos de quarenta anos atrás conseguiram estragar — muito embora a restauração feita por eles ainda tivesse, na época, um branco ofuscante —, parecíamos já ter esquecido quase por completo o episódio desagradável da manhã. A velha tília, com seu grandioso tronco retorcido pela passagem de quase nove séculos, o poço profundo aberto no coração da pedra pelos cativos de outros tempos e a linda vista que se abria do alto da muralha, de onde ouvimos, ao longo de quase quinze minutos, as badaladas dos inúmeros carrilhões da cidade, tudo contribuiu para apagar de nossa mente o incidente do gatinho morto.
Fomos os únicos visitantes a entrar na Torre de Tortura naquela manhã — ou pelo menos assim nos disse o velho zelador — e, como tínhamos o lugar todo para nós, pudemos observá-lo mais minuciosa e satisfatoriamente do que teria sido possível com outras pessoas presentes. O zelador, vendo em nós sua única fonte de rendimentos naquele dia, estava disposto a fazer de tudo para atender a nossos desejos. A Torre de Tortura é de fato um lugar tenebroso, mesmo agora que os muitos milhares de visitantes já injetaram ali uma torrente de vida — e da alegria que a acompanha. Na época a que me refiro, no entanto, o local tinha o aspecto mais sombrio e sinistro que se possa imaginar. A poeira de várias eras parecia ter se depositado ali, e as memórias do lugar, feitas de trevas e horrores, pareciam ter se tornado de tal forma vivas que teriam agradado às almas panteístas de Fílon ou de Spinoza. O andar mais baixo, por onde entramos, aparentemente vivia tomado, em seu estado normal, por um breu tão absoluto que parecia a própria escuridão encarnada. Mesmo a luz do sol forte que penetrava pela porta aberta parecia perder-se na vasta espessura das paredes e iluminava apenas a alvenaria — uma alvenaria ainda tão áspera como quando os andaimes dos construtores foram desmontados, mas coberta de poeira e marcada aqui e ali por manchas escuras que, se paredes pudessem falar, relatariam suas próprias lembranças terríveis de medo e dor. Foi com alívio que nos dirigimos à empoeirada escada de madeira.
O zelador deixara a porta externa aberta para iluminar um pouco mais o caminho, pois, para nossos olhos, a solitária vela de pavio longo e fedorenta enfiada num castiçal preso à parede oferecia uma luz insuficiente. Quando, atravessando um alçapão aberto, saímos num canto do pavimento superior, Amelia agarrou-se a mim com tanta força que cheguei a sentir as batidas de seu coração. Devo dizer, de minha parte, que o medo de minha esposa não me surpreendeu, pois aquele salão era ainda mais aterrorizante do que o do andar inferior. Aqui havia sem dúvida mais luz, mas apenas o suficiente para que pudéssemos vislumbrar os terríveis contornos do que nos cercava. Os construtores da torre tinham, evidentemente, pretendido que apenas aqueles que alcançassem o topo pudessem usufruir das alegrias proporcionadas pela luz e pela paisagem. Lá, como notáramos pelo lado de fora, havia inúmeras janelas, ainda que de uma pequenez medieval, mas em todo o resto da torre só o que havia eram raras e estreitas seteiras, como era comum nas edificações de defesa medievais. Apenas algumas dessas seteiras iluminavam o salão em que nos encontrávamos, mas estavam posicionadas tão no alto que de lugar nenhum era possível divisar o céu através da grossura das paredes. Em armeiros, e apoiados em desordem contra as paredes, havia diversos machados de decapitação, ou “espadas do carrasco”, enormes armas de cabo longo,lâminas largas e gumes afiados. Bem perto viam-se os cepos sobre os quais os pescoços das vítimas eram apoiados, com entalhes profundos aqui e ali, nos lugares em que o aço atravessara a barreira de carne e rompera a madeira. Ao redor do salão, dispostos das formas mais irregulares, encontravam-se inúmeros instrumentos de tortura que, só de olhar, davam um aperto no coração — cadeiras cheias de espetos capazes de causar dores instantâneas e lancinantes; leitos e cadeiras cravejados de pinos de ponta arredondada que pareciam provocar tormentos comparativamente menores, mas que, embora mais lentos, eram igualmente eficazes; potros, cintos, botas, luvas, coleiras, todos feitos para comprimir à vontade; cestos de aço em que cabeças podiam ser lentamente esmagadas até virar polpa, se necessário; ganchos de sentinela, de cabo comprido e lâmina afiada para vencer toda e qualquer resistência — uma especialidade da antiga polícia de Nuremberg; e uma infinidade de outros dispositivos feitos para o homem ferir o homem.
Amelia ficou lívida de horror diante daquelas coisas, mas felizmente não desmaiou, pois, sentindo-se um pouco tonta, acabou por sentar-se numa cadeira de tortura, da qual se levantou de um salto e com um grito, deixando de lado, na mesma hora, qualquer inclinação para o desmaio. Nós dois fizemos de conta que fora o estrago causado a seu vestido pela poeira da cadeira e pelos espetos enferrujados que a havia perturbado, e o sr. Hutcheson teve a gentileza de aceitar a explicação com uma risada carinhosa.
O objeto principal, no entanto, de todo aquele salão de horrores era a máquina conhecida como Virgem de Ferro, que se encontrava perto do centro da sala. Era toscamente construída no formato de uma figura de mulher, algo semelhante a um sino ou, para oferecer uma comparação mais próxima, na forma da sra. Noé da Arca das crianças, mas sem a cintura esbelta e os quadris perfeitamente arredondados que caracterizam o tipo estético da família Noé. Na verdade, dificilmente alguém identificaria uma figura humana no formato daquele objeto não fosse o ferreiro ter moldado no alto da parte da frente um arremedo de rosto de mulher. A máquina estava coberta de ferrugem e poeira. Uma corda amarrada a um aro fixado na parte frontal da figura, perto de onde a cintura deveria estar, passava por uma roldana presa à trave de madeira que sustentava o teto. Puxando essa corda, o zelador mostrou que uma seção da parte da frente era, na verdade, uma porta, presa de um lado por uma dobradiça. Vimos, então, que as paredes da máquina eram consideravelmente espessas, deixando do lado de dentro apenas espaço suficiente para um homem. A porta era igualmente grossa e extremamente pesada, pois, mesmo com a ajuda do dispositivo da roldana, o zelador precisou de toda a sua força para abri-la. Esse peso colossal devia-se em parte ao fato de a porta ter sido propositalmente instalada de modo que seu peso a empurrasse para baixo, o que fazia com que se fechasse sozinha quando a corda era solta. O interior da máquina estava todo corroído de ferrugem — não, pior, pois a ferrugem que advém apenas da passagem do tempo dificilmente teria carcomido tão profundamente as paredes de ferro; não, a corrosão daquelas manchas cruéis era muito mais profunda!
No entanto, foi só quando examinamos a parte interna da porta que o propósito diabólico da máquina se revelou por completo. Ali havia vários espetos, quadrados e imensos, largos na base e afiados na ponta, posicionados de tal forma que, quando a porta se fechava, os de cima perfuravam os olhos da vítima e os de baixo seu coração e órgãos vitais. A visão daquilo foi demais para a pobre Amelia, que dessa vez perdeu os sentidos por completo, e precisei então carregá-la escada abaixo e sentá-la num banco do lado de fora até que se recuperasse. Que seu choque foi profundo ficou mais tarde comprovado pelo fato de meu filho mais velho carregar até hoje um grosseiro sinal de nascença no peito, que, por consenso familiar, foi aceito como uma marca da Virgem de Nuremberg.
Quando voltamos ao salão, encontramos Hutcheson ainda parado diante da Virgem de Ferro; estivera evidentemente filosofando e, agora, compartilhava suas ruminações conosco como numa espécie de exórdio.
“Bom, acho que aprendi alguma coisa por aqui enquanto a dona estava se recuperando do desmaio. Tenho a impressão de que estamos um bocado atrasados no tempo, lá do nosso lado do oceano. Todo mundo lá nas planícies acha que são os índios que dão as cartas quando se trata de fazer um homem se sentir desconfortável, mas desconfio que a velha polícia medieval de vocês ganharia dos índios com um pé nas costas, nesse departamento. O Estilha até que não se saiu mal na cartada dele contra a selvagem, mas essa jovem senhora aqui ganharia dele com um straight flush se estivesse no jogo. As pontas desses espetos ainda estão bem afiadas, embora até as beiradas estejam carcomidas pelo que costumava ficar nelas. Não seria nada mau se o nosso departamento de índios arranjasse alguns exemplares desse brinquedinho aqui para mandar para as reservas, só para acabar com a empáfia dos selvagens, e das fêmeas deles também, mostrando como a velha civilização bota todos eles no chinelo. Acho que vou entrar nessa caixa um instante, só para ver qual é a sensação.”
“Ah, não! Não faça isso!”, disse Amelia. “É terrível demais!”
“Pois eu acho, dona, que nada é terrível demais para uma mente curiosa. Eu já estive em muito lugar esquisito no meu tempo. Passei uma noite dentro de um cavalo morto enquanto um incêndio queimava todo o prado à minha volta no território de Montana e, numa outra ocasião, dormi dentro de um búfalo morto quando os comanches partiram para a guerra e eu não estava muito disposto a deixar o meu cartão de visitas com eles. Passei dois dias dentro de um túnel desmoronado na mina de ouro de Billy Broncho, no Novo México, e fui um dos quatro sujeitos que ficaram presos quase um dia inteiro dentro de um caixão flutuante que tombou de lado quando estávamos deitando as fundações da Buffalo Bridge. Nunca fugi de uma experiência esdrúxula e não vai ser agora que vou começar!”
Como vimos que ele estava mesmo decidido a fazer o experimento, eu disse:
“Bom, então ande logo, amigo velho, e acabe com isso de uma vez!”
“Pois não, general”, disse ele, “mas acho que ainda não estamos prontos. Os cavalheiros, meus predecessores, que foram parar aí dentro dessa lata não se ofereceram para ocupar o posto por livre e espontânea vontade, não mesmo! Tenho a impressão de que eles eram lindamente amarrados antes que o grande golpe fosse desferido. Se quero fazer a coisa como manda o figurino, tenho que ser devidamente preparado. Aposto que o nosso velho zé-das- portas aqui pode arranjar um pedaço de corda e me amarrar bem amarradinho, não pode não?”
A pergunta foi dirigida ao velho zelador, mas ele, que compreendia o sentido geral da fala de Hutcheson, embora talvez não pudesse apreciar toda a riqueza das nuanças dialetais e das imagens, sacudiu a cabeça, fazendo que não. Sua recusa, no entanto, foi apenas formal e feita para ser contornada. O americano meteu uma moeda de ouro na mão do zelador e disse:
“Tome aqui, parceiro! A bolada é sua. E não precisa ficar espavorido, não, que ninguém aqui está pedindo para você ajudar a estripar ninguém!” O zelador então trouxe uma corda fina e puída e começou a amarrar nosso companheiro de viagem com a firmeza necessária. Quando a parte superior de seu corpo já estava amarrada, Hutcheson disse:
“Espere um instante, juiz. Acho que sou pesado demais para você me carregar pra dentro da lata. Deixe eu ir andando até lá primeiro, depois você termina o serviço nas minhas pernas.”
Enquanto dizia isso, Hutcheson foi se enfiando na abertura da máquina, que era a conta justa de seu corpo. Sem dúvida, o espaço era exíguo para alguém do seu tamanho. Amelia observava tudo com olhos que transbordavam de medo, mas não quis dizer nada. O zelador concluiu a tarefa amarrando os pés do americano bem unidos um ao outro, de forma que Hutcheson estava agora absolutamente impotente e fixo em sua prisão voluntária. Parecia estar se deliciando com a experiência, e o sorriso incipiente que era habitual em seu rosto desabrochou por inteiro quando ele disse:
“Esta Eva aqui só pode ter sido feita da costela de um anão! O espaço aqui dentro é mísero para um cidadão adulto dos Estados Unidos se encafuar. A gente costuma fazer caixões de defunto mais espaçosos lá no território do Idaho. Agora, juiz, você vai começar a descer essa porta, devagar, em cima de mim. Quero sentir o mesmo prazer que os outros mequetrefes sentiam quando os espetos começavam a avançar para os olhos deles!”
“Ah, não! não! não!”, interveio Amelia, histérica. “É horrível demais! Não vou suportar ver uma coisa dessas! Não vou! Não vou!” Mas o americano estava irredutível.
“Escute, coronel”, disse ele, “por que você não leva a patroa para dar uma voltinha? Eu não magoaria os sentimentos dela por nada neste mundo, mas agora que já estou aqui, depois de viajar quase treze mil quilômetros pra chegar a este lugar, não acha que seria cruel demais ser obrigado a desistir justo da experiência que eu estava seco de vontade de fazer? Não é sempre que um homem tem a oportunidade de se sentir feito comida enlatada! Eu e o nosso juiz aqui vamos liquidar esse assunto em dois tempos, e aí vocês dois vão poder voltar e nós vamos rir juntos disso tudo!”
Mais uma vez, a resolução que nasce da curiosidade venceu e Amelia decidiu ficar, agarrando-se com força ao meu braço e tremendo de nervoso, enquanto o zelador ia soltando lentamente, centímetro por centímetro, a corda que mantinha aberta a porta de ferro. A expressão de Hutcheson estava definitivamente radiante enquanto seus olhos acompanhavam os primeiros movimentos dos espetos.
“Bom!”, disse ele, “acho que não me divirto assim desde que saí de Nova York. Tirante um arranca-rabo com um marinheiro francês lá em Wapping, que aliás também não foi nenhum piquenique no parque, ainda não tinha tido nem uma mísera chance de me divertir de verdade neste continente desgramado, que não tem nem urso nem índio e onde homem nenhum carrega uma arma pra se defender. Devagar aí, juiz! Não me apresse esse negócio! Quero fazer valer o dinheiro que botei nesse jogo, ora se quero!”
O zelador devia ter nas veias um pouco do sangue de seus predecessores naquela torre macabra, pois sabia manobrar a máquina com uma lentidão tão aflitiva e angustiante que depois de cinco minutos, durante os quais a extremidade externa da porta não se moveu nem a metade desse número em centímetros, Amelia começou a entregar os pontos. Vi seus lábios perderem a cor e senti que já não apertava meu braço com a mesma força. Olhei em volta um instante à procura de um lugar onde pudesse fazê-la sentar-se e, quando olhei para ela de novo, percebi que seus olhos fixavam-se num ponto ao lado da Virgem.
Seguindo a direção de seu olhar, vi a gata preta armando o bote, sorrateira. Seus olhos cintilavam como luzes de alerta na escuridão daquele lugar e pareciam ainda mais verdes em contraste com o vermelho das manchas de sangue que ainda cobriam seu pelo e sua boca. Gritei:
“A gata! Cuidado com a gata!”, e no mesmo instante ela saltou diante da máquina. Parecia um demônio triunfante. Seus olhos faiscavam ferocidade, o pelo estava tão eriçado que ela parecia ter o dobro de seu tamanho e seu rabo chicoteava o ar como faz o de um tigre diante de uma presa. Quando viu a gata, Elias P. Hutcheson achou graça, e seus olhos definitivamente brilhavam de prazer quando ele disse:
“Raios me partam se essa selvagem não está toda pintada para a guerra! Dê um passa-fora nela se ela quiser vir com gracinha pra cima de mim, porque o chefe aqui me prendeu tão bem prendido que nem que o diabo diga amém eu vou conseguir salvar meus olhos se ela resolver arrancá-los. Vá com calma aí, juiz! Não me solte essa corda, ou estou liquidado!”
Nesse momento, Amelia terminou de desfalecer, e precisei segurá-la pela cintura para que não caísse no chão. Enquanto cuidava de Amelia, vi a gata preta armando outro bote e levantei-me de um salto para enxotar a criatura. Mas naquele instante, lançando uma espécie de guincho diabólico, a gata arremessou-se não contra Hutcheson, como esperávamos, mas contra o rosto do zelador. Suas garras pareciam dilacerar a esmo, como vemos em gravuras chinesas que retratam um dragão empinado para atacar, e quando olhei outra vez vi uma delas cravar-se bem no olho do pobre homem e rasgá-lo ao descer por sua bochecha, deixando uma grossa listra vermelha do sangue que parecia jorrar de todas as veias.
Com um berro de puro terror, que veio mais rápido até do que sua sensação de dor, o homem saltou para trás, largando a corda que mantinha aberta a porta de ferro. Corri para pegá-la, mas já era tarde: a corda correu como um relâmpago pela roldana e a porta maciça fechou-se, impulsionada pelo próprio peso.
Enquanto a porta se fechava, vi num relance o rosto de nosso pobre companheiro de viagem. Hutcheson parecia paralisado de terror. Olhava para a frente fixamente, com uma medonha expressão de angústia, como que entorpecido, e nenhum som saiu de seus lábios.
Então os espetos fizeram seu trabalho. Felizmente, o fim foi rápido, pois quando, com um puxão violento, consegui abrir a porta, vi que os espetos tinham penetrado tão profundamente que chegaram a ficar presos nos ossos do crânio que haviam transpassado, arrancando Hutcheson — ou o que restara dele — de dentro de sua prisão de ferro até que, amarrado como estava, seu corpo desabou no chão com um baque nauseante, de rosto virado para cima.
Corri para minha esposa, peguei-a no colo e a carreguei para longe dali, pois temia por sua razão se ela acordasse do desmaio e deparasse com uma cena como aquela. Deixei-a no banco do lado de fora e corri de volta para dentro. Encostado à coluna de madeira estava o zelador, gemendo de dor e segurando um lenço ensanguentado sobre os olhos. E, sentada na cabeça do pobre americano, estava a gata, ronronando alto enquanto lambia o sangue que escorria das órbitas vazadas de Hutcheson.
Creio que ninguém irá me chamar de cruel por ter pegado uma das espadas dos antigos carrascos e partido a gata ao meio ali mesmo onde ela estava sentada.
Conto de Bram Stoker - Tradução de Sonia Moreira
Fonte: A Causa Secreta e Outros Contos de Horror – Machado de Assis - Editora Boa Companhia
Nenhum comentário:
Postar um comentário