Todos nós escondemos nossos monstros em algum lugar. No dia a dia, sentimo-nos obrigados a fingir ser melhores do que realmente somos, para sermos aceitos, para sermos queridos, para sermos respeitados. Se um dia expuséssemos nossos demônios interiores, simplesmente não existiria mais vida na Terra, nós nos mataríamos uns aos outros.
Mas leva muito tempo para chegarmos a esta constatação, temos de fazer uma autoavaliação e trazermos à tona os nossos maiores medos. Foi o que descobri depois de me casar com Julia.
Nós nos conhecemos na escola, dois adolescentes aprendendo o que é amor. Brigamos várias vezes e, ocasionalmente, namorávamos outras pessoas, mas sempre retornávamos um para os braços do outro até que, um dia, resolvemos tornar sério o nosso relacionamento; assumimos para todos os amigos e jurávamos que nos casaríamos.
Terminei o colégio e comecei a trabalhar num escritório. Estávamos com o dia do casório marcado quando o pai e a mãe de Julia morreram tragicamente num acidente de carro, atingidos por um caminhão com um motorista bêbado no volante. Julia ficou devastada, mal conseguia erguer-se da cama e, num de seus momentos de razão, ela me disse:
— Por favor, venha morar comigo na casa dos meus pais. Ela é grande e tenho medo de ficar sozinha lá.
Então peguei as minhas tralhas e eu e Julia passamos a morar juntos. O casamento havia sido adiado por tempo indeterminado.
Ela havia feito questão que eu me sentisse à vontade, como se estivesse na minha própria casa e não demorou para que eu ficasse confortável. A única ressalva que ela me fez foi:
— Só não vá ao porão. As coisas dos meus pais estão lá embaixo e quero deixá-las lá. Por favor, jure que não descerá até lá.
Prometi de pés juntos, sem questionar, afinal aquela havia sido a casa dos finados, não me custaria respeitar este limite.
No entanto, depois de algumas semanas, reparei que Julia descia ao porão todas as manhãs e permanecia vários minutos lá embaixo. Primeiro, pensei que ela remexia as coisas dos pais, tentando matar as saudades deles, mas, depois, fiquei com a pulga atrás da orelha. À noite, ouvia ruídos e gritos vindos de abaixo, como se alguém estivesse aprisionado no porão.
Julia era a pessoa mais meiga do mundo, portanto, jamais poderia imaginar que ela fosse daqueles tipos de psicopatas que fazem estas coisas, como aquele austríaco que manteve a filha presa nos fundos da casa por décadas, estuprando-a, e que tivera com ela uma meia dúzia de filhos incestuosos. Julia jamais faria isto!
Mesmo assim, as descidas diárias ao porão e os gritos abafados à noite me inquietavam.
— O que tem lá embaixo mesmo? — perguntei a ela.
— Já lhe disse: as coisas dos meus pais.
— Que tipos de coisas?
— Retratos, móveis, roupas, pertences pessoais... Você sabe, objetos deles — Julia gaguejou, ela mentia para mim.
Algum tempo depois, Julia teve de ir a um congresso da universidade e passaria uma noite fora, retornando na manhã seguinte.
— Cuide-se — ela me disse, cheia de uma estranha preocupação, quando nos despedimos na rodoviária — Amanhã estou de volta.
Ao sair do trabalho, aproveitei para encontrar-me com alguns amigos num bar e pôr a conversa em dia. Cheguei tarde em casa, já havia passado da meia noite e estava preocupado que Julia já houvesse me ligado. Levaria uma bela mijada dela, caso isto houvesse ocorrido. Até podia escutá-la dizendo: “é só eu sair de casa por uma noite que você já cai na gandaia!”. E eu teria de inventar mil explicações, suplicar perdão e dizer- lhe um trilhão de vezes que a amava.
Tomei um banho rápido e me joguei na cama, mas logo comecei a ouvir os sons e gritos vindos do porão.
Julia não está em casa, que mal faria descer e ver o que ela esconde de mim?, pensei. Se já estava ferrado por ter saído para beber com os amigos, adicionar mais esta infração na lista seria apenas um detalhe. Assim, fui até a cozinha e tentei abrir a porta para o porão, que estava trancada. Dei alguns murros na porta e ela parecia ser de metal, como aquelas portas corta-fogo, ou seja, sem a chave eu não teria como abri-la. Depois das pancadas, ouvi alguns berros e murmúrios, realmente era como se alguém estivesse lá embaixo, num cativeiro, e esta ideia me atormentou por várias horas naquela noite.
Tentei dormir, mas não conseguia. Refleti que, se eu não descobrisse o que havia lá embaixo naquela oportunidade, com Julia fora de casa, talvez não tivesse outra tão cedo.
Por isto, revirei as gavetas de Julia e encontrei um molho com várias chaves. Retornei à cozinha e testei chave por chave, já estava quase desistindo quando uma delas se encaixou na fechadura e consegui destrancá-la. Meu coração disparou.
Fiquei cogitando as possibilidades: e se realmente houvesse uma pessoa sequestrada ali embaixo, o que eu faria? Delataria Julia à polícia? Talvez não, tornando-me assim cúmplice dela. Eu seria obrigado a ajudá-la, a encobrir os rastros de seu crime e quem sabe o que mais decorreria disto.
Criei coragem e desci, degrau por degrau, lentamente.
O porão estava escuro, havia apenas uma pequena lâmpada num canto, onde havia também uma cama. Não era um cômodo entulhado como eu imaginava, havia bem pouca coisa ali excetuando a lâmpada e a cama, onde, aparentemente, alguém dormia.
Fiquei aterrorizado. A família de Julia era uma quadrilha de sequestradores! Nestas horas, ponderei que a melhor decisão seria soltar a vítima e chamar a polícia. Era a única decisão sensata possível.
Aproximei-me da cama e vi uma moça com os braços e pernas amarradas.
Parecia estar dormindo, com uma respiração pesada, quase um ronco, e vestida apenas com uma camisola. Chegando mais perto, reconheci seus traços, apesar da pele branca e do corpo magérrimo, quase um esqueleto. Havia visto algumas fotos de Julia com uma outra jovem, sua irmã, morta por causa de alguma doença rara vários anos atrás.
Fiz uns cálculos mentais e supus que aquela moça deveria estar presa no porão há mais de seis anos, e os pulsos e tornozelos arroxeados e em carne viva confirmavam a minha hipótese.
— Bárbaros — resmunguei — como fazem isto com a própria filha!
Então cutuquei a jovem, tentando acordá-la.
— Está tudo bem com você? — perguntei.
Ela abriu os olhos num segundo e tentou morder a minha cara. Berrava, urrava, debatia-se como um animal selvagem. Seus dentes podres e olhar negro avançavam em minha direção, enquanto os braços tentavam se soltar das amarras.
— Maldito! — ela gritava — Maldito! Eu quero a sua alma desgraçada!
Recuei, apavorado, caindo de costas no chão.
A moça remexia-se na cama, quase arrancando-a do chão. Eu me arrastava para trás.
Vendo que sua estratégia não havia funcionado, a moça mudou de abordagem. Sussurrando, quase sibilando, ela me chamou:
— Perdão... Não queria assustar você. Por favor, solte-me... Solte-me.
Levantei-me e cheguei até a sentir pena dela.
— Como você é lindo — ela me disse, lambendo os lábios — Venha, solte-me e me foda... Venha e me coma.
— Não posso... — murmurei — Não posso...
— Miserável! — a voz dela engrossou — Vou matá-lo, rasgarei sua garganta e tomarei sua alma. Vou matá-lo!
Deixei-a gritando e corri para a cozinha. Procurei por uma faca e estava decidido voltar e acabar com o sofrimento daquela jovem.
Por que teriam mantido-a tanto tempo presa lá embaixo? Não seria mais fácil ter procurado ajuda médica? Um exorcista? Uma equipe de parapsicólogos?
No entanto, depois pensei que talvez eles até houvessem tentado tudo isto sem sucesso. Quem era eu para julgá-los?
Tranquei a porta do porão e devolvi a chave no exato lugar onde a havia encontrado. Nunca disse nada a Julia sobre aquela noite, também nunca mais perguntei sobre as das dela ao porão.
A irmã endemoniada continua lá embaixo, berrando, contorcendo-se e amaldiçoando-nos. Tenho medo que um dia ela se solte das cordas e mate-nos a nós dois. Tenho medo, medo de verdade, mas meu amor por Julia é maior. E ela jamais poderá me repreender, um dia, quando descobrir quais são os monstros que também guardo no porão.
Buenos Aires
26/11/2011
Fonte: Fantasmas, Vampiros, Demônios e histórias de outros Monstros — Henry Alfred Bugalho — Oficina Editora, 2013.
Nenhum comentário:
Postar um comentário