quarta-feira, 18 de maio de 2016

Os Internos


“Lisonjeava-me que o professor me iniciasse em seus segredos profissionais, mas não disse nada, antes concentrei-me inteiramente na dor causada pelos dois parafusos com que o torniquete de parafuso estava fixado ao meu maxilar.” — Hans-Ulrich Treichel, O Perdido

É óbvio que tenho certeza de que aquele lugar existe. Tenho tanta certeza que me dá até raiva de explicar. Aquele lugar existe simplesmente porque há tempos eu estudo lá. Fica numa travessa que liga duas ruas esquecidas da Zona Norte de Porto Alegre, bem em frente a um condomínio com muro alto e cerca eletrificada. Não falo do colégio em si; o que eu quero dizer é que existe um outro lugar dentro desse mesmo colégio, um lugar muito diferente daquilo que ele é durante o dia. Sei que as pessoas costumam acreditar que os colégios funcionam apenas durante o dia e não há nada neles à noite a não ser colégios fechados. Mas isso é o que elas pensam.

Foi bem nesse lugar que muitos não acreditam existir que, em um dia comum de final de ano, quando todos mal podiam esperar pelas férias de verão, aconteceu o que eu vou contar. Tudo andava normal: a campainha tocou no mesmo horário das seis horas da tarde, guardei meu caderno e estojo dentro da mochila e fui para o portão do colégio esperar que me buscassem. Como sempre acontecia, quase todos os alunos já haviam ido embora, e eu continuava lá no portão, ao lado do guarda, esperando a minha mãe. Aos poucos, um por um, os últimos alunos se mandavam. Eram umas sete da noite quando dois irmãos da sétima série que esperavam escorados em uma mureta também se foram, me tornando oficialmente o último a ir embora do colégio.

Odeio ficar sozinho com alguém que não conheço. Cruzei os braços e fiquei ouvindo o guarda assoviar uma música. Olhávamos os dois para a rua na esperança de que o carro da minha mãe aparecesse logo. Não desviei o olhar dos paralelepípedos por um segundo sequer, temendo um início de conversa com o guarda. Mesmo assim, quando cansou de assoviar, o guarda disse:

— Tua mãe costuma se atrasar, né?

Fiz que sim com a cabeça só pra não ter que explicar. Resolvi ir ao banheiro para escapar daquela conversa toda, então avisei o guarda. Antes que eu fosse, porém, ele me deteve com a explicação de que, àquela hora, os banheiros já estariam todos trancados. Fiquei parado na frente dele sem dizer nada, com as duas mãos no meio das pernas, até que ele me mandou usar o banheiro do primeiro andar, junto à sala dos professores, no outro extremo do prédio. Deixei a mochila ali e me fui.

Quando voltava do banheiro, fui surpreendido por uma mulher no meio do caminho. Apesar do susto, cumprimentei-a com um sinal de cabeça e segui caminhando em direção à saída. Ela, no entanto, me parou com um monte de perguntas sobre a minha série e sobre o que eu estava fazendo ali. Quando respondi, dois homenzarrões surgiram de trás dela e me seguraram.

Agarrado pelos braços, fui levado até os fundos do colégio, que até então eu conhecia apenas como “área da pré-escola”. Era uma parte dividida do restante do prédio por uma murada, que só tinha acesso através de uma passagem por dentro da sala dos professores. Depois de abrirem a grade interna da sala, que dividia as duas partes do colégio, a mulher apontou para uma porta vermelha e ordenou que eu entrasse. Foi quando eu descobri duas coisas: 1) aquela área não era da pré-escola e 2) eu não era o último aluno a ir embora naquela noite.

Havia quatro filas de cadeiras, mas nenhum quadro negro naquela sala. As janelas tinham as cortinas cerradas de modo que pouca ou nenhuma luz passava através delas. Além de mim, mais uns seis alunos estavam lá. No canto próximo à porta, havia uma garota estendida sobre uma maca daquelas usadas para dar os primeiros socorros às pessoas acidentadas. Ela choramingava de uma maneira estranha, sem mexer a boca, soltando um ruído contínuo do peito ou até da cabeça. Não parecia consciente. Sem saber o que fazer, escolhi uma cadeira vazia e me sentei.

Não demorou nada e duas mulheres que pareciam enfermeiras, trajando calças de algodão, camisas brancas sem gola colocadas pra dentro das calças e cabelos presos em rabos-de-cavalo, entraram sem bater na porta. Elas se comportavam como se não tivessem nos visto. Eu não sabia quem eram e o que faziam ali, mas daquelas mulheres emanava uma autoridade natural; falavam baixo e jamais repetiam nada. Tinham vozes mais grossas que o normal para mulheres. Sobre as bandejas de metal que carregavam, pude ver seringas e nacos de algodão espalhados, além de tiras compridas de borracha de soro. Uma das enfermeiras, a mais alta, prendia sob a axila uma prancheta com umas folhas pregadas. Depois de olhar para aquela prancheta por um momento, vi que se tratava de uma listagem. Uma delas disse:

— Vamos fazer uns exames. São exames-surpresa.

Estranhamente, todos pareciam estar esperando por aquele exame. Quanto a mim, não desconfiava de nada, mas mesmo assim achei melhor não fazer qualquer pergunta. Àquela altura, me submeter a eles parecia inevitável. Uma das enfermeiras foi até a moça deitada, apoiou a bandeja sobre a borda da maca e puxou o braço esquerdo dela. Enquanto via a enfermeira amarrá-lo com uma tira de borracha de soro, meu próprio braço foi agarrado. Senti uma picada forte seguida de uma ardência. Depois, veio uma fraqueza quando vi uma porção de sangue preto enchendo a ampola de vidro. Fiquei nauseado até que não pude segurar a ânsia e vomitei sobre meu próprio colo, respingando no meu braço atado, no avental da enfermeira e na listagem de nomes que ela carregava. Quando finalmente retirou a seringa do meu braço, ela não usou nenhum dos nacos de algodão para aparar o ferimento por causa da sujeira. Um ponto de sangue cresceu advindo do furo minúsculo coberto pelo caldo amarelado até virar uma gota. Ele escorreu e formou um filete espesso que se misturou ao vômito antes de pingar no piso frio do chão.

Acordei com a garganta ácida, e percebi que já era noite alta quando fomos levados ao pátio interno dos fundos do colégio. Era cercado por um muro altíssimo em formato circular, que dava ao espaço um aspecto de poço gigantesco. No meio daquela área mal-iluminada, sob um coreto baixo de madeira, um grupo de enfermeiras reunia as pessoas para o que parecia ser algum tipo de comunicado. Alunos iam surgindo como ratos, vindos de todos os cantos. Debaixo do coreto, uma mulher vestindo um saiote negro até o chão e com os cabelos presos por um coque trazia consigo a prancheta em que meu vômito respingara antes. O momento parecia importante. Um grupo de uns cem alunos se espremia em silêncio em torno do coreto. Sem se importar com a movimentação que ainda havia no pátio, a mulher de saiote negro limpou a garganta com um pigarro e começou a falar:

— Aqueles que foram reprovados no exame e que, portanto, necessitam de assistência intensiva imediata, permanecendo sob nosso acompanhamento na condição de internos enquanto durar a recuperação, em ordem alfabética são — fez uma pausa para respirar e depois reiniciou em alto volume a leitura dos nomes contidos na listagem — Amanda Raquel Mazenda, Ana Carolina Porto de Medeiros, Beatriz Lins Bueno, Bruno Xavier Zago, Carlos Nilo Paiva, Caroline Signore Terra, Cláudio Neves Shubert...

À medida que a lista ia sendo revelada, dava para ouvir alguns soluços ao fundo. Pessoas começavam a chorar, tapando o rosto com as mãos. Outras olhavam para os lados após o anúncio de cada nome, como que à procura de seu dono. Por fim, quando a leitura terminou, a mulher de saiote negro avisou que aqueles alunos que quisessem conferir o resultado preciso do exame deveriam se aproximar para fazer um pedido de consulta à planilha. Uma grande fila se formou. Enquanto algumas pessoas choramingavam com discrição, outras cochichavam baixinho umas ao ouvido das outras, comentando algum nome inesperado que havia aparecido. Como bem se podia entender, aqueles que foram reprovados no exame não se deram ao trabalho de entrar na fila para saber o resultado preciso e, dessa forma, só de olhar para o pátio dava para saber quem eram os reprovados.

Depois de poucos minutos na fila — a fila andou rápido e muito ordenada —, chegou a minha vez. Não havia ninguém declamando os resultados dos exames. Em vez disso, a coisa funcionava assim: o aluno dizia o nome para uma enfermeira; esta enfermeira então o encaminhava para uma das cinco enfermeiras com cópias da lista; estas, então, procuravam a folha correta e mostravam para o aluno. Na verdade, cada um tinha apenas poucos segundos para olhar a planilha, e o que eu pude mesmo ver ao lado do meu nome foi um código assim: 85794238529.

Enquanto eu esperava para olhar aqueles quadrados, sem que eu percebesse, uma outra fila foi formada junto ao muro. Eram os reprovados, que compunham um meio-círculo ao redor do pátio. Assim que todos olharam seus resultados, as enfermeiras com as cópias da lista deram lugar a quatro novas enfermeiras que traziam até o coreto uma banqueta cada uma. À medida que eu e os demais aprovados no exame fomos sendo retirados do pátio, os reprovados eram chamados na ordem da fila a se sentarem nas banquetas. Empunhando máquinas elétricas, tesouras e navalhas, as enfermeiras tosavam e depois aparavam ao máximo os cabelos dos alunos que haviam falhado no exame. Por último, com a ajuda de sabão e água quente, raspavam com força até que não restasse nenhum fio. Em seguida, um homem de óculos que carregava outra prancheta ia até o aluno já careca e, em sua cabeça, fazia algumas marcações com uma caneta piloto, tais como pontos, sinais em xis e linhas tracejadas.

Já a caminho da saída, quando éramos guiados em fila pelos corredores, cruzamos com pessoas vestidas de maneira muito estranha: uniformes de algodão branco sob aventais brancos de borracha, além de luvas e máscaras do mesmo material. Cada uma daquelas pessoas carregava consigo uma maleta de plástico bem comum, daquelas que podem ser utilizadas por médicos, pescadores ou operários. As maletas pareciam estar pesadas, mas de fato era impossível saber o que havia ali dentro. O máximo que consegui foi ouvir o barulho de metal sacudindo e se batendo dentro delas.

Ao atravessar de volta a porta que dividia o colégio, fui cegado pela luz do dia que entrava pelas janelas sem cortina. Os inspetores mandavam os alunos para dentro das salas e carros buzinavam em frente ao colégio como em um dia letivo qualquer. As garotas carregavam novamente os livros junto ao peito e sacudiam os cabelos, os atrasados corriam, a tia da portaria batia palmas para apressá-los como sempre.

Aquilo tudo e, então, a aula simplesmente estava por recomeçar?

O sinal tocou e eu fiquei ali parado bem onde estava. Enquanto analisava tudo com o máximo cuidado, percebi que estava novamente com minha mochila nas costas. Fiquei incrível. Passado o eco da campainha que ainda restava dentro dos meus ouvidos, fui para a aula, escutando o barulho que vinha do outro lado do colégio. Fora como um déjà vu. As marteladas, os sons de ferro se chocando e as serras tinindo eu não saberia explicar. Mas os gritos de desespero e o choro, eu sei, não eram de crianças da pré-escola.

por Gustavo Faraon


Ficção de Polpa - Volume 1 - Organizado por Samir Machado de Machado - 2012.

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