quarta-feira, 18 de maio de 2016

O Homem dos Ratos

“Seu amor – ou, antes, seu ódio – era, em verdade, subjugador; foram precisamente eles que criaram os pensamentos obsessivos, cuja origem ele não era capaz de compreender e contra os quais lutou em vão para se defender.” – Sigmund Freud

Não vou contar a história de Carlos desde o princípio. Apesar de alguns especialistas dizerem que reside nos primórdios da sua vida o núcleo de todos os problemas futuros, não vou me ater a esta parte. Vou começar a contar a história quando a doença iniciou, ou, na verdade, quando já estava desenvolvida, mas passou a ser percebida por todos.

Carlos parecia ser um homem comum, tinha algum dinheiro de família e uma vida saudável. Ainda jovem, conheceu Marta, uma menina não muito bonita que morava perto de sua casa. Logo namoraram, noivaram e casaram, tudo sem perturbações ou problemas maiores dos que enfrentam outros casais.

Porém, no dia do casamento com Marta, os pais de Carlos sofreram um acidente e morreram e dizem que foram estes acontecimentos que deflagraram a doença de Carlos, ou um, ou outro, ou até mesmo ambos. Ele demonstrou uma grande tristeza com o acontecido. Após alguns dias, decidiram mudar para onde Carlos morava com os pais. Era uma casa grande, com aposentos espaçosos. O pátio era amplo e, segundo Carlos, “cabia muita coisa naquele terreno.”

Como disse, foi neste momento que a doença começou a surgir, mas sem lhe causar preocupações ou maiores constrangimentos. Carlos, aos poucos, passou a não querer se desfazer de pertences antigos, como roupas e sapatos velhos ou papéis sem serventia. Isto, todavia, não incomodava Marta, pois a vida deles como casal era ótima.

Carlos, entretanto, foi piorando e começou a guardar em casa potes de xampus, tubos de pasta de dente, escovas antigas e outros objetos de higiene, e foi neste momento que sua doença foi percebida. Carlos entrava no banheiro e lá ficava por horas. Não falava com ninguém e não respondia aos chamados da mulher. Depois, se ouvia a descarga, e ele saía, com um olhar distante e muito triste. Sua mulher, por vezes, o perguntou a respeito do que estava acontecendo, mas ele nunca respondeu, aparentava estar de fato abatido e vazio, alguma coisa parecia ter sido tirada dele.

Levaram-no a especialistas, vários, e cada um dava um diagnóstico diferente. Um deles disse para proibirem-no de entrar no banheiro, outro disse que se tratava de algo passageiro e outro, ainda, que era um problema decorrente de sua infância, e da demissão de sua babá, quando este tinha por volta de três anos. O fato é que nenhum tratamento funcionou, até porque Carlos não saía mais de casa e evitava ter contato com outras pessoas, a não ser com Marta, a qual fazia questão de ter sempre por perto. Ela gostava disso, gostava da necessidade dele de tê-la sempre por perto, se sentia amada, se sentia necessária. Amava ele também, amava ele por tudo que ele era e passava por cima de sua doença como se esta fosse apenas um pequeno defeito que pertence à personalidade de qualquer um.

Os meses se passavam, e a doença de Carlos piorava cada vez mais. Ele começou a guardar todo o lixo que era produzido em casa. Sacos se acumulavam na garagem. Aos poucos, tomaram conta da sala de jantar. O cheiro se tornou insuportável e animais surgiram na casa. Ratos e baratas eram constantes, e quando Marta matava um desses bichos, ele fazia questão de protegê-los, de modo a não permitir que ela os jogasse fora. Assim, eles apodreciam dentro da casa, onde quer que estivessem, colaborando ainda mais para o cheiro insuportável.

O local estava inabitável, não havia lugar para se acomodar e algumas portas não podiam mais ser fechadas ou abertas, uma vez que as pilhas de lixo ocupavam toda a casa. Montanhas saíam pelas janelas e, do lado de dentro, um estreito corredor formado por uma aglomeração dessas “coisas” malcheirosas construía uma estreita trilha, por onde ainda se podia chegar ao quarto, à cozinha e aos banheiros. Isto, contudo, de nada adiantava, uma vez que estes aposentos não tinham mais muita utilidade nem espaço para suas funções. Além disso, as portas haviam sido obstruídas e não era mais possível entrar ou sair.

A vida de Marta se tornou insuportável. O ar dentro dos aposentos era quente e fedorento. Marta, por instantes, tentava prender a respiração para não sentir aquele cheiro, mas, momentos depois, tinha que respirar e o fazia com força para recuperar novamente o ar. Então, sentia o cheiro forte e azedo, passava mal, ficava enjoada e vomitava. Apesar disso, ela não conseguia ir embora. Amava Carlos e gostava de estar com ele. Mas como era terrível amar alguém que não a respeitava, que a fazia morar em um lugar como aquele! Ela passava os dias chorando, tentando buscar coragem para ir embora, mas não conseguia: seu amor por ele era maior do que o amor por ela mesma.


Carlos já não tomava banho fazia meses e se justificava dizendo que não poderia deixar a água escorrer pelo ralo (mesmo este já estando há muito obstruído) e ainda que a água, passando em seu corpo, tiraria dele sua pele, alguns pelos e os animais microscópicos que lá viviam. Eu não posso me desfazer disto, dizia ele com sinceridade. Ou, quando Marta tentava jogar algo fora – você não pode tirar isso de mim, gritava angustiado. De fato não podia, sua doença não deixava. Essas frases eram repetidas dezenas, centenas, milhares de vezes durante um dia e Marta já não aguentava mais.

Certo dia, ela precisou ir ao banheiro, mas como o do seu quarto estava obstruído pelas “coisas”, ela teve que ir ao outro, que ficava no final do corredor e só era utilizado por ele. Ao abrir a porta do banheiro, ainda com extrema dificuldade, sentindo que algo impedia seu movimento, Marta viu uma montanha malcheirosa de fezes e urina que ocupava todo o ambiente. Devia fazer meses que seu marido guardava seus excrementos naquele banheiro. Marta ficou tonta, nauseada, perdeu as forças, desmaiou e foi acudida por Carlos.

Ela acordou deitada sobre alguns sacos de lixo pretos, no meio da sala de estar.

Estava furiosa, não entendia como seu marido podia fazer aquilo com ela, e muito menos com ele mesmo. Eles brigaram. Ela disse que ele tinha que jogar tudo fora senão ela mesma o faria. Eu não posso me desfazer disto, dizia ele, e você não pode tirar isso de mim! Marta não entendia. Esse monte de sujeira, esse monte de lixo, restos de comida e esta montanha de merda? – questionava ela. Mas isso tudo é seu, é tudo para você, são meus presentes para você, respondia Carlos chateado com a incompreensão da mulher. No fundo, sabia que não era verdade, ou em parte não era verdade. Sabia que muito além de um presente para ela, aquilo era um presente para ele mesmo, reter tudo aquilo era, antes de tudo, um presente para si mesmo. Mas isso é sujeira, é lixo, é merda – repetia ela – é sujeira, é lixo, é merda...

Carlos ficou embravecido, e sua irritação se tornou cada vez maior e mais incontrolável. “Sujeira, lixo, merda...” essas palavras ressoavam na cabeça de Carlos e já não faziam mais sentido, apenas se repetiam, iam e vinham, já sem significado. “Suj, Lix, Mer, Suj, Lix, Mer...” as palavras rodavam em sua cabeça. “S, L, M, S, L, M, S, L, M...” Marta falava sem parar, mas as palavras não chegavam mais à consciência de Carlos, ele não estava conectado com a realidade, ou com as palavras de Marta. “S, L, M, S, L, M, S, L, M...” as letras se repetiam em sua mente e Marta continuava e gesticular e a mexer os lábios, mas nada penetrava nos pensamentos de Carlos.

Isso não é Sujeira, isso não é Lixo, isso não é Merda – repetia ele enquanto olhava o caos em que havia se transformado a residência do casal.

Então, de repente, a sua mente se abriu para uma frase de Marta, a qual era mais importante do que qualquer outra: chega, vou embora!, gritou ela enfurecida.

A irritação de Carlos tomou proporções gigantescas e mesclou-se com um pavor imenso, que cresceu e tomou conta dele, de sua mente, de seus atos. “Sujeira, Lixo, Merda, Ir Embora”. Não, ela não poderia ir embora! Carlos investiu com rapidez contra Marta, agarrou-a pelo pescoço e apertou forte por alguns instantes. Para Carlos pareceu apenas um segundo, pois na sua mente não passava o tempo, apenas pensamentos e as palavras de Marta “S, L, M, S, L, M, S, L, M...”. Ir embora! Embora! “S, L, M, I, E, S, L, M, I, E, S, L, M, I, E, S, L, M, I, E...”. Já para Marta aquele momento deve ter durado uma eternidade.

Marta caiu no chão sem vida. Carlos sentiu um alívio intenso, pegou o corpo da mulher e jogou em cima da montanha de “coisas”.

Como “ir embora”? – pensou ele.

Eu não poderia me desfazer disto e você não pode tirar isso de mim.

por Rafael Spinelli


Ficção de Polpa - Volume 1 - Organizado por Samir Machado de Machado - 2012.

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