O pouco dinheiro que trouxera perdera com uma dessas mulheres que apanham esses homens sem rumo em ruas quaisquer. A mulher, pelo menos, era das boas. Divertiu-se. Depois o roubo, a reclamação, os gritos, e os homens que ela chamara para que a defendessem.
Apanhou um bocado. Perdeu um dente, e a dor que sentiu no peito indicava uma costela quebrada. Que haveria de soldar-se. Tudo se arranja com o tempo, refletia o homem. Menos a fome que o obrigava a comer lixo. Se ainda pudesse voltar para casa.
A casa ficava no final de uma rua sem saída. Sólida. Dois pavimentos. Cercada por muros altos cobertos de hera. A gente que morava ali não passava fome, com certeza. Sobrava-lhes mais que o suficiente.
Aproximava-se à noitinha com cuidados para não ser visto. As casas daquela rua possuíam pátios enormes, portanto restavam um tanto quanto isoladas. O que se tornava interessante. Observava os horários de saída e entrada das casas vizinhas.
Não percebera movimento maior na casa. Como se estivesse quase abandonada. Só as luzes. Que se acendiam pouco depois que ele chegava. As mesmas luzes que acabaram por intrigá-lo. Percebeu. Com o passar dos dias, era sempre menor o número de lâmpadas acesas. Até restar uma. E, dias depois, nenhuma. Teriam viajado? Ninguém estaria protegendo a casa? Não notara nenhuma atitude diferente nos últimos dias que indicasse o abandono da casa por parte de seus proprietários. Sequer marcas de pneu sinalizavam algum movimento.
Aguardou alguns dias e, como a situação não se modificasse, decidiu.
Entrar pelo portão principal não era conveniente. Procurou um local mais protegido que o afastasse dos possíveis olhares da vizinhança. Com esforço, agarrando-se nas heras, escalou o muro. Sentado no alto, observou, com cuidado, o que os olhos podiam ver. Absoluto silêncio. Nenhum sinal de luz na casa. As árvores, em movimentos discretos devido ao pouco vento, inundavam-se de luz graças à lua.
Procurou alguma árvore próxima ao muro que o auxiliasse na descida. Nenhuma. Resolveu pular. Caiu de mau jeito. Machucou a perna esquerda. Algo lhe despertou a atenção. Como se estivesse sendo observado. Um ressonar leve. Um barulho de folhas amassadas. Olhou atentamente em todas as direções. Alguns passos em direção a uma árvore. Nada. Mancando, aproximou-se da casa. A porta estava apenas encostada. Empurrou-a. Entrou em meio à completa escuridão.
Tateando, buscou um interruptor.
Estupefato, olhava a sala. Havia um odor que não distinguia. Não era de mofo ou de casa fechada. Talvez... Mas ele não podia acreditar. Os móveis encontravam-se derrubados. Uma quantidade de vasos, copos e pratos quebrados e tapetes fora do lugar. Como se tivesse havido uma luta feroz e alguém, tentando escapar de alguma ameaça iminente, fora derrubando tudo ao seu redor para se proteger. E, em desespero, acabara por quebrar o que se punha ao alcance. Ninguém na sala. Nenhum som. No interruptor, manchas de sangue. E os ossos. Ossos de todos os tamanhos e em quantidade. Limpos. Como se houvessem sido lavados. Ou, então, descarnados até o que o último resquício de carne desaparecesse. Meus Deus!, o homem pensou atônito, são ossos...
Não conseguiu completar o pensamento. Um ruído o fez voltar-se. Um grito de pavor travou-se na garganta.
O cão era enorme. Negro. Pelo curto, lustroso. Nele, se distinguiam os olhos, claros e frios. E as mandíbulas. O cão vigiava como se ao homem coubesse a iniciativa. E nessa expectativa, cuidaram-se por alguns segundos. O homem arfava, o cão não se movia. Embora mancasse, correu para a escada e procurou subi-la o mais rapidamente possível. O cão, sem pressa, o acompanhava.
Ao abrir a primeira porta encontrada, cambaleou. O fedor de podridão entrou por suas narinas, por sua boca, por seus poros. Encharcou-o por inteiro. Sentiu náusea. O vômito chegou-lhe à boca. Cambaleou. Ajoelhou-se e baixou a cabeça, encostando-a no chão. Ao se recobrar minimamente, viu sobre a cama um resto de corpo do qual não mais se distinguia o sexo tal a putrefação. Faltavam-lhe pedaços, sobravam-lhe ossos. O sangue, coagulado, espalhava-se pelos lençóis, pelo piso, sob os seus pés.
Aterrorizado, virou-se para trancar a porta. Tarde demais.
Terminada a tarefa, o cão, placidamente, desce, degrau por degrau, e chega à sala. Fareja os ossos espalhados até se decidir por um deles. Abocanha-o e volta para o seu lugar. Aninha-se sobre as folhas, debaixo da árvore copada, segura o osso com as patas e o rói. Satisfeito, larga um suspiro e encaixa a cabeça entre as patas. À espera.
por Sergio Napp
Ficção de Polpa - Volume 1 - Organizado por Samir Machado de Machado - 2012.
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