quarta-feira, 18 de maio de 2016

Cosmologia


Cosmologia (ou de como uma simples coceira pode mudar a vida de alguém).

Começou tímida, uma coceirinha de nada. Enfiei a chave de casa no ouvido e girei como quem abre uma fechadura na própria cabeça. O metal frio fez com que eu me arrepiasse e a coceira naquele momento passou.

No outro dia, quando eu estava no escritório, voltou um pouco mais forte. Sem cotonete à mão, alcancei a tampa da minha caneta e fui introduzindo devagar. Aos poucos diminuía, mas de súbito voltava, e eu era obrigado a colocar toda a parte fina da tampa para dentro do ouvido, mexendo, girando, cutucando de leve o tímpano delicado. Esse ritual repetiu-se algumas vezes até acalmar a coceira interna. Só depois disso, pude voltar ao trabalho.

No banho, antes de dormir, lavei bem e deixei um pouco de água quente escorrer para dentro. Ao terminar, desliguei o chuveiro e peguei a toalha. Sequei com delicadeza e introduzi uma ponta da toalha no ouvido, mexendo lentamente para dentro e para fora. As cerdas felpudas faziam cócegas nas paredes do ouvido e eu ameacei um riso nervoso. O ar úmido deixava todo o ambiente quente e aconchegante, ao mesmo tempo em que eu relaxava meu corpo sentindo a toalha úmida entrando na minha cabeça.

A noite, porém, foi difícil. A qualquer desconforto, eu, automaticamente, levava o dedo ao ouvido e tentava introduzi-lo, sem sucesso, até a maldita coceira diminuir. A ponta da unha arranhava as paredes internas do ouvido e eu, com medo que sangrassem, dava tapas leves na fronte e fechava os olhos querendo relaxar. Mas, se eu virava a cabeça para um lado, o incômodo no ouvido começava de novo. Então, eu me espreguiçava para esticar todos os músculos e convidá-los a dormir, deixava a cabeça quieta no travesseiro, fechava os olhos, respirava fundo e, antes do último pensamento acordado, a coceira voltava.

Pensei que um frio inexistente pudesse estar atrapalhando meu sono e me cobri. Fiquei quieto uns minutos, mas, ao primeiro movimento do meu corpo, sentia a coceira no ouvido de novo. Empurrei o lençol com os pés na esperança que o ar no meu corpo pudesse refrescar e acalmar. Em vão, pois em minutos a coceira incomodava outra vez.

Decidi levantar. Tomei água, escutei duas músicas no rádio e, já com obrigação de dormir, voltei pro quarto querendo descansar. Na boca, muita saliva quente e doce, e, ao mesmo tempo em que eu enfiava o dedo no ouvido, apertava a língua contra o céu da boca, coçando ambos, como se alguma ligação houvesse. Sobre o lençol, me encolhi de olhos fechados e ouvidos atentos, viajando com o pensamento num quase-sono, até que a coceira voltou para tirar meu quase sossego.

Comecei a cutucar mais e mais forte e a coceira não diminuía e eu coçava mais e mais e mais e mais e já estava de pé depois de me remexer bastante na cama e aquilo incomodava muito e parecia líquido e depois um pouco mais sólido e às vezes bem duro e às vezes meio pastoso, mas sempre coçando coçando coçando e estava doendo muito e eu ali tentando enfiar o dedo com os dentes cerrados o corpo teso dando tapas na cabeça e chacoalhando de um lado para outro e eu estava muito nervoso e meu dedo não entrava e eu só não gritei porque não tive forças naquele momento e a maldita coceira ali dentro e coçava coçava coçava e eu metendo o dedo até que encostei em algo.

Parecia plástico, mas não era. Nem vidro, nem papelão, nem madeira. Cutuquei um pouco mais e veio saindo uma coisa fina, que parecia sólida, mas, ao mesmo tempo, era flexível. Com muito esforço, consegui segurar usando os dedos como uma pinça e fui puxando pra fora. Aí já não era mais a coceira que atrapalhava.

Aos poucos, eu comecei a sentir dor. Muita dor. Alguma coisa dentro do meu ouvido estava emperrada, e eu forçava para que saísse lá de dentro, sem saber do que se tratava. Mesmo com a dor forte, eu continuava a puxar, meio assustado, meio curioso. A coisa continuou saindo, e eu sentia as paredes internas da minha cabeça pressionarem umas às outras, como se no outro segundo fossem estourar com tudo o que estivesse dentro, e também por isso doía. Quis ir ao banheiro para ver pelo espelho o que estava saindo, mas não tive forças. A dor me consumia e eu continuei no quarto, puxando e sofrendo, curiosidade e medo, agonia e dor.

Quando senti algo mais fofo, meio mole, eu me assustei. Tentei enfiar de volta, mas, fosse o que fosse, estava emperrado dentro do meu ouvido. Insisti apertando com o indicador e empurrando a cabeça no sentido contrário, sem estocadas rápidas e fortes, mas não funcionou. Não tive escolha. Segurei firme com os dedos e puxei forte. Do meu ouvido, de dentro da minha cabeça, saiu algo em forma de bastão, mais grosso que uma caneta e com uns dez centímetros de comprimento.

Emputeci! Já estava havia minutos nessa função e a dor era muito forte. Fechei a mão em volta do tal bastão, apertei com toda a força ao mesmo tempo em que puxava pra fora da cabeça e gritei arregalando os olhos quando percebi que aquilo que eu pensara ser um bastão era na verdade um dedo.

Naquele momento, saía uma mão de dentro da minha cabeça. Uma mão de gente, mão de verdade, mão que saía de mim e eu não podia deixar presa no meu ouvido.

O susto pela mão era tão grande quanto a curiosidade em descobrir o que estava acontecendo. Ainda maior, porém, era o misto de dor e medo que eu sentia, mas precisava continuar puxando aquela mão quente e fofa de dentro do meu ouvido para fora de mim.

A mão continuou saindo e depois dela veio um braço e eu com muita dor e a mão viva se mexendo e o braço também e eu ali puxando tudo aquilo e saiu um ombro e continuei nesse esforço todo e quando veio a cabeça eu fechei os olhos e gritei muito porque estava doendo bastante e quando dói assim eu grito e fecho os olhos e a cabeça saiu dum jeito que pensei que eu ia explodir e logo depois veio o outro ombro e um tronco e também consegui ver um umbigo e logo atrás vieram duas pernas seguidas por dois pés que ao saírem quase estouraram meu crânio e quando eu menos esperava olhei para o lado e eu estava ali.

Eu do meu lado.

Um outro eu.

Eu me encarando.

Foi então que senti uma coceira no outro ouvido.

por Marcelo Juchem


Ficção de Polpa - Volume 1 - Organizado por Samir Machado de Machado - 2012.

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