quarta-feira, 18 de maio de 2016

Carne

Acordei com fome. E com uma dor de cabeça insuportável. Provavelmente, bebi alguma coisa forte na noite anterior. Deve ter sido uma festa muito boa: não me lembro de nada recente e estou vestindo uma roupa de sair. Acho que dormi com ela. No estado em que estava, provavelmente, não tive paciência de vestir algo mais confortável.

Tem um cheiro estranho por aqui. Parece lixo, mofo. Deve ter alguma coisa apodrecendo. Não, é só desse lugar. Estas roupas estão fedendo. Será que o cheiro deste lugar impregnou nelas? Estão imundas, cheias de pó. E essa dor de cabeça desgraçada! Preciso me levantar e trocar essas roupas.

Espera um pouco. Aqui não é a minha casa. Olha só pra este lugar. Paredes descascando, pedaços de tecido rasgado atirados pelos cantos, as cômodas e o guarda-roupa com as portas e gavetas escancaradas. A escrivaninha do canto foi atirada contra a parede. Tem um desgaste na quina desse móvel que se encaixa com aquele talho aberto na parede e com os pedaços de tijolo e cimento espalhados pelo chão. O lustre está dependurado, pendendo no ar graças a um fio de cobre desencapado. Falta pouco para se estatelar no chão. E o fedor. É azedo, insuportável e se espalha facilmente. Como quando alguém mata uma aranha, daquelas grandes, e é impossível evitar que aquele cheiro ocre invada nossas narinas. Ele vem da cozinha. Vou para lá e aproveitar para matar a fome.

Meus passos são lentos. Deve ser a dor de cabeça, mas acho que, se comer alguma coisa, para de incomodar. Eu tento me apressar para cruzar o corredor e chegar de uma vez à cozinha, mas é impossível.

Sinto-me um pouco tonto. Não é uma tontura de embriaguez, nem de labirintite. Tive isso quando era criança depois que caí do beliche de cabeça no chão. Não sabia onde era esquerda ou direita e não podia andar sozinho pela cidade sem me perder. Hoje, é diferente. Tem essa dor na parte de cima da minha cabeça me impedindo de agir direito, como se a comunicação mental com meu corpo estivesse bloqueada de algum jeito. Estou lento até para piscar. É como se o corpo respondesse meio segundo depois de ter ordenado a ação. Tudo truncado.

É nessa tranqueira que eu entro na cozinha. Tem comida espalhada pelo chão. Está tudo sujo e desarrumado. Copos e talheres quebrados. Os armários também estão escancarados. O lixo está aberto. As moscas revoam sobre ele, buscando alguma coisa gostosa para saciar sua fome. Eu também quero comer. Até já sei o que quero: uma carne bem suculenta. Eu não sou daqueles que curtem um bife malpassado, mas tudo que desejo é sentir a maciez da carne misturada com o suquinho formado pelo sangue sobre a minha língua e cortar cada pedacinho com os dentes.

Não foi uma festa o que aconteceu aqui. Os únicos que podem ter festejado são os ladrões que pilharam este lugar e talvez os outros insetos no meio daquele lixo, sob as moscas. Deviam estar procurando algo valioso pelo jeito como deixaram este lugar. E eu me pergunto o que foi que vim fazer aqui.

O fedor vem da geladeira, a porta está entreaberta. A luz de dentro está falhando. Acho que faz tempo que esta porta está dessa maneira. Eu abro a geladeira, o fedor invade minhas narinas e junto com aquela visão me provoca ânsia de vômito. Dedos, olhos, orelhas em um determinado estado de decomposição estão dentro de uma panela, mantendo as moscas e os besouros longe.

Minha reação foi correr para o banheiro, certo de que meu estômago revolveria qualquer coisa que eu tenha comido antes. Contudo, minhas pernas me obedecem com dificuldade. A maldita dor. Não posso evitar: vomito ali mesmo. Lentamente me agacho, mas nada acontece. Então me levanto decidido a fazer aquela dor passar. Queria sair de uma vez dessa casa estranha que já começava a me provocar arrepios e pensamentos asquerosos.

Reviro os armários em busca de alguma coisa para comer, mas que tenha um aspecto saudável, o que parece raro. Abro portas, muitas sem nada dentro. Em outras, só o que encontro são louças e utensílios de cozinha. Assim como no chão, havia coisas quebradas e esparramadas. Por fim, localizo um vidro de pepinos em conserva, fechado, intocado. Não gosto de pepino, mas pela fome que estou me vejo obrigado a comer. Não sacio minha fome. Parece pior agora. É uma vontade de comer ainda maior, e cada vez mais específica. Eu quero carne.


Saio da casa e vejo. Não apenas aquela casa estava de pernas pro ar, tudo ao seu redor também estava. Havia alguns carros com os vidros quebrados, placas de trânsito retorcidas, jardins estragados, muito lixo e pedaços de tudo quanto era coisa espalhados pelo chão. A destruição persiste até onde a vista alcança. Um cenário pós-apocalíptico. Uma guerra acabara de passar por ali e eu estava dormindo. Como não acordei com tudo isso acontecendo ao meu redor, só Deus sabe.

Além da constante dor de cabeça me incomodar, ouço os ganidos de um pastor alemão. Está latindo e rosnando para mim, mas está amarrado a uma barra de ferro, ao lado do seu canil. Eu vou até ele, devagar, da maneira que meu corpo obedece a minha cabeça. De repente, uma vontade surge na minha mente, e caminho mais decidido até o cão. Ele não para de rosnar e latir, fazendo cara feia. Chego tão perto dele e de uma maneira tão vagarosa que é impossível impedir que seus dentes afundem em minha perna e arranquem um bocado dela. Eu não sinto dor. Só fico mais decidido a fazer o que planejei. Não tem sangue escorrendo pela minha perna, mas eu não me preocupo com isso e seguro firme a cabeça e a mandíbula do animal. Minha dor de cabeça persiste e eu devo comer carne. Posso enxergar minha tíbia e, lutando contra as vontades do bicho, separo com força seu maxilar do crânio. Até que, enfim, arrebento a fuça do cachorro e o mato. Em seguida, acalmo minha vontade: mordo o cão e arranco um pedaço de seu lombo.

O sabor seria bom, não fossem os pelos. Aproveito e como um pouco mais do animal. Passo um tempo devorando o tecido muscular do bicho até chegar à conclusão de que não é aquilo que eu quero. Não é suficiente. Não encerra minha fome. Só me deixa mais sedento de carne, com a cara lambuzada de sangue. Minha dor de cabeça não passou, continuo lento, inclusive para mastigar.

Levanto-me para procurar alguém que possa explicar o que aconteceu. Sei que a esperança é pouca, mas é só o que tenho. Tiro o sangue do meu rosto passando a manga da camisa sobre a boca e encaro a destruição. Os vidros dos prédios estão estilhaçados, portas arrombadas como se saqueadas, alguns carros estão virados. No chão, jazem aves mortas, e vez que outra encontro também animais de pequeno porte como gatos e ratos, uns vivos e outros não. Continuo caminhando por uns cinco quilômetros e não vejo pessoa alguma.

Estou em um ambiente que desesperaria qualquer um, mas eu não consigo parar de pensar na música sobre o fim do mundo, porque me sentia bem. Só queria entender o que aconteceu aqui e matar a minha fome, comer carne e terminar com essa dor na minha cabeça.

Depois de quase uma hora, ouço uns barulhos estranhos vindos de um mercadinho revirado. Vou até lá, irritado com meus movimentos lerdos, mas consigo ver que tem gente no lugar. São três. Dois caras e uma garota. Estão recolhendo coisas e colocando nas suas mochilas. É possível que estejam angariando suprimentos para sobreviver nessa devastação. Finalmente vou poder falar com alguém para tentar entender o que aconteceu por aqui.

Porém, quanto mais eu me aproximo da garota, mais eu a desejo. Eu quero sentir seus braços nos meus dentes. Melhor que entender essa situação seria mastigar um pedaço do corpo dela. A pele tão clara pede para ser dilacerada. O ar inocente implora para ser cessado. Esse é o sabor da carne que quero sentir. Como se fosse aquele bife malpassado, cheio de sangue. Quero saboreá-la tão lentamente quanto me arrasto pela cidade.

Eles estão de costas, não podem me ver ou escutar meus passos vagarosos. Quando perceberem minha presença, já terei engolido um pedaço da garota. Toco o seu ombro, e ela retribui com um grito rouco, me empurra para trás e corre até seus amigos.

Um dos rapazes grita: “Cuidado! É um deles!”. O outro, arrancando um pedaço de ferro da prateleira com uma rapidez que para mim é extraordinária, avisa os amigos: “Eu dou um jeito nele, se afastem!”. Ele avança contra mim empunhando aquele pedaço de metal. Eu tento gritar: “Não!”, e o que sai da minha garganta são grunhidos e sons guturais.

Ele acerta o topo da minha cabeça com a arma improvisada, o lugar da fonte da dor. A dor é interrompida e perco o controle do corpo. Os três se afastam de mim e, antes de eu perder o discernimento e todos sentidos, ouço um dos caras dizer: “Agora ele está como deveria — morto em um corpo morto”.

por Guilherme Smee


Ficção de Polpa - Volume 1 - Organizado por Samir Machado de Machado - 2012.

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