segunda-feira, 4 de abril de 2016

Contrata-se um Ghostwriter


Eleonor Schneider, diante da máquina de escrever, se preparou para redigir o livro da sua vida. Ler “São Bernardo” a encantou, a narrativa simples de Paulo Honório; refletiu que também deveria tentar. Mas ela não era nenhum Graciliano Ramos e, assim que a página em branco foi ajeitada, o peso das palavras oprimiu Eleonor. Não sabia o que dizer, nem como.

— Por que você não contrata um Ghostwriter? — Marieta, amiga de infância de Leonor, sugeriu.

— O que é isto?

— Algo comum nos Estados Unidos, amiga. “Escritor-fantasma”, em português, você paga alguém para colocar suas ideias no papel e, no final, quem recebe os créditos é você. Mais fácil, impossível.

Proposta tentadora. De fato, resolveria muitos problemas estruturais de sua narrativa, o primeiro deles: como colocar num livro setenta anos de história pessoal, três casamentos, uma viuvez, um filho morto em acidente de carro, uma filha doutora na Suíça, Eleonor sobrevivendo a um acidente de avião (com mais cinco outras pessoas).

Todas aquelas coisas, grandes ou triviais, que indivíduos comuns consideram imprescindíveis de serem escritas num livro, para o bem-geral da humanidade e da posteridade.

Por isto, na manhã seguinte, Eleonor anunciou no jornal:  “Contrata-se um Ghostwriter, para livro autobiográfico”.

Logo começaram os telefonemas e as visitas. Candidatos com currículos, constando as editoras com as quais trabalharam, catálogo de clientes satisfeitos, trechos de suas obras. Eleonor os avaliava como se selecionasse um quarto marido: não bastava ter ótimas qualificações, tinha de ser simpático, não podia ser feio (ser bonito não era imperioso, mas feio, nem pensar!), e com horários extremamente maleáveis, pois as melhores ideias de Eleonor ocorriam de madrugada, ou seja, disponibilidade para receber telefonemas às três ou quatro da manhã.

E tal pessoa só poderia ser Pietro della Fontana, vinte e tantos anos, olhar profundo, sorriso sincero e, de acordo com ele, pelo menos dois livros publicados na Itália. Apesar do português com sotaque, um conhecimento gramatical impecável; não trouxe currículo, mas apenas um pedaço de guardanapo, no qual, diante da própria Eleonor, redigiu um parágrafo, descrevendo-a.

A viúva se encantou com os adjetivos a ela atribuídos:

— Quando podemos começar, meu filho?

Três vezes por semana, Pietro vinha à casa de Eleonor, geralmente após a hora do jantar. Eles tomavam chá na sala de estar, Eleonor contava sua vida a Pietro, mostrando-lhe fotos esmaecidas, por vezes, algumas relíquias de família; este tomava notas de tudo, num caderninho velho com folhas amareladas. Riam juntos dos momentos pitorescos; choravam juntos dos trágicos.

— Estou tão feliz com minha escolha, Marieta! — Eleonor no telefone — O rapazinho é atencioso e dedicado. Amanhã, trará as primeiras páginas do que escreveu.

Mas Pietro della Fontana não cumpriu o prometido. Ao invés dum manuscrito, trouxe apenas o velho caderno de notas.

— Mas você prometeu, Pietro!

— Desculpe-me, Eleonor, eu deveria ter-lhe explicado o meu método de trabalho antes de começarmos. Você só terá acesso ao texto quando eu houver terminado. Então, revisaremos juntos e faremos as modificações.

— Mas você prometeu!

— Foi um deslize que não se repetirá.

A confiança de Eleonor nele foi abalada. No entanto, agora que os trabalhos já haviam começado, iriam até o fim.

Uma ideia brilhante despertou Eleonor, sobre como iniciar o próximo capítulo. Sentada na cama, discou o número de Pietro; ninguém atendeu.

— Atenda, Pietro! É importante — ela sussurrava. Secretária eletrônica.

— Pietro, aqui é Eleonor, ligue para mim o mais rápid... — não concluiu; tinha certeza de haver ouvido passos na escada. Desligou o telefone, vestiu o penhoar e abriu uma fresta na porta. Mesmo estando tudo escuro, uma sombra se lançava de baixo para cima, na escada, por causa do fraco abajur na sala. Eleonor teve medo. E se fosse um assaltante? Um estuprador (há quase uma década que ela não sabia o que era ter um homem dentro dela)? E se fosse um psicopata assassino em série?

Eleonor apagou a luz e correu para dentro do closet. Arfava. Coração na boca. O invasor mexeu na maçaneta, a porta do quarto se abriu, um vulto entrou e caminhou diretamente para o closet. Encostou a cabeça na porta.

— Eleonor, — murmurou — sou eu, você me chamou. Eu vim.

Os pelos da viúva se arrepiaram, conhecia a voz, mas, tomada pelo pânico, não raciocinava. Permaneceu em silêncio.

— Sou eu, Pietro... — a voz insistiu.

Poderia ser uma emboscada, uma armadilha. O bandido poderia tê-la espiado e investigado a todos com quem ela mantinha contato. Mas a voz era mesmo de Pietro.

Lentamente, ela abriu o closet.

Os olhos profundos do rapaz a fitavam, à distância dum palmo:

— O que você está fazendo dentro do armário, Eleonor? — ele riu.

— O que é que você está fazendo aqui em casa, a esta hora da madrugada? — a raiva da senhora era muito inferior ao medo — Saia daqui agora! Saia, saia, saia!

— Calma, Eleonor, eu trouxe alguns rascunhos para você dar uma olhada. Achei que não deveria deixá-la esperando.

— Não vou repetir, rapaz. Se você não for embora agora, serei obrigada a chamar a polícia.

Pietro trajou uma decepcionada expressão. Com um maço de papéis sob o braço, deu a volta e desapareceu escada abaixo.

Eleonor tremia, havia perdido o sono, tinha medo de descer e confirmar se Pietro havia realmente partido. Ficou sentada na beira da cama, abraçando-se, aguardando o sol nascer.

— História esquisita esta que você me contou, amiga — Marieta apoiava a cabeça no punho cerrado, pensativa.

— Vou cancelar o contrato com ele. Não quero mais saber de ele escrevendo minha história. Quem deu a ele direito de vir até minha casa, entrar sem ser convidado? Não quero mais saber.

— E se ele for perigoso, Eleonor? Ele pode querer se vingar de você. Talvez seja melhor você descobrir mais coisas sobre ele. Eu gostaria de conhecê-lo.

— Por favor, não me peça isto.

— Confie em mim, Eleonor. Você sabe como é minha intuição. Uma olhada neste rapaz e já vou saber se ele é de boa índole.

Eleonor aquiesceu. Ligou para Pietro e marcou um jantar, na casa dela, para aquela mesma noite.

— Ele já deve estar para chegar — Eleonor apertava as mãos, enquanto Marieta dispunha a mesa para três.

A hora combinada chegou e Pietro, sempre inacreditavelmente pontual, não apareceu.

— Algo deve ter acontecido — Marieta racionalizava — É apenas um atraso.

— Ele descobriu tudo. Percebeu que se tratava duma arapuca — o olhar de Eleonor saltava de janela em janela, temendo que alguém as estivesse observando.

Ficou tarde, e lá fora começava a chover.

— Ele não vem, amiga. E já está na minha hora. Cuide-se e, qualquer coisa, saiba que pode contar comigo — Marieta abraçou Eleonor e partiu.

Dez minutos depois, alguém bateu à porta. É Marieta, esqueceu-se da sua sacola de bordados, Eleonor pensou. Com a sacola em mãos, Eleonor atendeu a porta:

— Aqui está... — disse, sorridente, mas logo os dentes se esconderam, à porta estava Pietro.

— Desculpe-me o atraso, Eleonor — ele estava todo encharcado — Meu carro enguiçou. Tive de caminhar até aqui.

Sem convidá-lo a entrar, Eleonor sugeriu:

— Quer que eu ligue para um mecânico?

— Não precisa. Só preciso dum lugar para passar à noite. Amanhã, quando estiver dia, eu mesmo posso consertar o carro.

— Você não pode ficar aqui, Pietro. Sinto muito.

— Por que não, Eleonor? Nós nos tornamos tão íntimos nestas últimas semanas — havia algo de macabro neste “tão íntimos”.

Ele avançou e afastou Eleonor com o braço. Retirou o casaco e o dependurou no cabide.

— Posso dormir no sofá mesmo — ele retirou as botas, Eleonor estática, maçaneta da porta aberta numa das mãos, sacola com bordados na outra.

— Feche a porta, Eleonor, está vindo um vento gelado de fora. Ela obedeceu.

Mesmo se trancando no quarto, Eleonor não estava sossegada. A recordação da outra noite a inquietava, jurava estar ouvindo Pietro andando lá embaixo, emitindo grunhidos como se fosse um bicho, subindo a escada, respirando perto da fechadura, e descendo a escada novamente. Ela se cobriu com o lençol, era como se Pietro estivesse dentro do quarto, prestes a puxar o lençol e sussurrar:

— Você me chamou... Eu vim.

Outra noite insone. Eleonor se levantou e olhou pela janela: as árvores castigadas pelo vento e pela chuva oblíqua. Foi até a penteadeira e apanhou o porta-retratos no qual a foto de Teobaldo, seu finado esposo, sorria. Um tímido reconforto, fugidia segurança; viu-se no espelho, olheiras proeminentes, cabelos despenteados, e, atrás de si, quase invisível, quase uma névoa, a silhueta de Pietro. Num grito, quase um soluço, Eleonor se virou. Nada, apenas sua imaginação; delírios causados pela falta de sono.

Pietro já havia partido quando Eleonor deixou o quarto; na mesinha de centro, um bilhete.

Obrigado pelo teto. Vemo-nos em breve.

Aliviada, Eleonor tratou de ligar para Marieta, mas quem atendeu não foi ela; a voz era de alguém mais jovem:

— Eu gostaria de falar com Marieta. Aqui é a Eleonor.

— Ai, Eleonor, mamãe faleceu ontem à noite.

— Meu Deus, Renata, o que aconteceu?

— Ainda não sabemos... Eu a encontrei na cama.

— E ela sofreu? — Eleonor perguntou.

— Gostaria de dizer que teve uma morte tranquila, mas o rosto dela... Era como se estivesse com medo. Dizem que pode ter sido um ataque do coração. A funerária acabou de levá-la.

Eleonor chorava. Se soubesse que nunca mais veria a melhor amiga, não teria lhe dado apenas um abraço; beijaria-lhe a face e agradeceria por todos estes anos de companheirismo.

Devia fazer uma última visita a ela, a sós. Foi até o necrotério. No semblante, aquelas mesmas feições descritas pela filha como sendo de medo. O que Marieta tinha a temer? Ou era apenas um ataque cardíaco mesmo? Com o pretexto de apanhar as roupas para o velório, Eleonor obteve permissão de Renata para entrar na casa da morta.

Logo que abriu a porta, encontrou pegadas de lama, que desapareciam após poucos passos. Porém, ao contrário do esperado, havia pegadas de quatro pés, dois possivelmente de Marieta, dois, bem maiores, dum homem. Alguém havia estado com Marieta, naquela mesma noite chuvosa. As pegadas pequenas desapareciam antes; as grandes, seguiam até perto do sofá. Eleonor as acompanhou, então, avistou, sob uma poltrona, apenas a pontinha duma folha de papel.

Ela se abaixou e a puxou para fora. Era uma folha velha de papel, amarelecida, escrita com letra pequena e apressada, exatamente igual às folhas do caderno de Pietro, exatamente como a caligrafia dele. Eleonor leu o que estava escrito:

Capítulo 47

Marieta não percebeu que alguém a havia seguido. Por razões muito importantes, a queria morta; ela poderia ser um entrave na missão dele; poderia pôr tudo a perder.

Desesperada, com a certeza de que a morte de Marieta não havia sido natural, Eleonor correu para a delegacia mais perto.

Os policiais riram da hipótese dela, leram o pedaço de papel, especularam que poderia ser uma coincidência mórbida, mas, sob insistente pedido de Eleonor, aceitaram fazer uma busca da ficha criminal de Pietro della Fontana.

Nada, mas um escrivão ouviu o nome e comentou:

— Pietro della Fontana? Este cara deve estar usando um nome falso!

— Por quê? — o outro policial perguntou.

— Este é o nome dum famoso escritor italiano. Minha esposa está fazendo uma dissertação de mestrado sobre a obra dele. Morreu uns oitenta anos atrás, acho.

A constatação foi dura para Eleonor, ela não tinha o nome verdadeiro do criminoso, o telefone que ele havia dado a ela estava fora de área, a polícia nem acreditava no que ela dizia.

Foi embora da delegacia com a sensação de impunidade, de que não conseguiria justiçar a morte da amiga. Na saída, porém, se deparou com o escrivão, cuja mulher conhecia a obra de della Fontana.

Suplicou-lhe ajuda, entregou-lhe seu endereço e lhe pediu que solicitasse à esposa que mandasse para ela algumas informações sobre Pietro.

Marieta foi velada e sepultada. De luto, olhos inchados de tanto chorar, Eleonor, ao chegar em casa, apanhou a correspondência. Havia um gordo envelope. Nele, um maço de documentos sobre Pietro della Fontana. Fotos, fac-símiles de manuscritos, biografia, bibliografia. Tudo, desde a foto até a caligrafia, o Pietro, escrito italiano, morto em 1926, mestre do gênero fantástico e de terror, se assemelhava ao Pietro, o ghostwriter.

Eleonor se trancou no quarto, e leu linha por linha o material que tinha em mãos. Descobriu que Pietro havia se mudado da Itália para esta cidade, e a casa na qual faleceu ficava a poucas quadras da de Eleonor. Seu Pietro, o ghoswriter, era um rapaz muito esperto, estava tentando assustá-la, querendo se passar por um escritor morto, mas com qual intenção? Com qual propósito?

Ela adormeceu sobre os papéis, exausta pelas noites insones e pela vigília ao corpo da amiga. Mas despertou, calafrios na espinha e ouvindo alguém respirando, bem pertinho de seu ouvido.

— Você me chamou, Eleonor.... Eu vim.

Instintivamente, relembrando seus tempos de meninice, quando ela e a irmã rezavam juntas um Pai-Nosso, quando tinham medo de que o Saci viesse, durante os verões no sítio, Eleonor começou a rezar.

— Ainda falta um último capítulo, Eleonor. Depois, vou embora. Sim, o último capítulo era sobre ela.

Os vizinhos reclamavam dum tremendo mal-cheiro. Ligaram para as autoridades e descobriram que vinha da casa de Eleonor. O corpo se decompunha há mais de um mês. Excetuando a filha doutora, que não dava a mínima para a mãe, ela não tinha parentes vivos, mais nenhum amigo próximo, ninguém havia dado falta por ela. Foi encontrada na cama, rosto contorcido, como quem sofreu muito. Ataque do coração, disseram.

Sobre a mesa de jantar, um manuscrito, letra pequena e apressada, autoria de Pietro della Fontana. O investigador, que coincidentemente havia sido o mesmo a quem Eleonor havia recorrido, um mês atrás, resolveu dedicar alguma atenção ao caso.

Descobriu que Eleonor havia comprado este manuscrito num antiquário do Centro, pela bagatela de cem reais. Provavelmente, não conhecia o autor, mas deve ter se impressionado pela antiguidade do documento e, talvez, pelo valor histórico.

A escrita de Pietro era poderosa e, possivelmente impressionada pela narrativa de terror, deve ter tido alucinações; acreditado ter visto o autor, ter falado com ele, ter pedido a ele que escrevesse sua autobiografia. A obra adquirida por ela era desconhecida dos pesquisadores, muitos reputaram-na como apócrifa, mas foi incluída, posteriormente, no corpus do autor como obra póstuma.

O que o investigador jamais compreendeu, nem queimou os neurônios tentando compreender, foi a coincidência de nomes entre os personagens do livro com as pessoas da vida real — Eleonor, Marieta, o próprio Pietro —, mas, às vezes, a arte imita a vida, noutras, a vida imita a arte, concluiu.

Nova York
25/06/2007


Fonte: "Fantasmas, Vampiros, Demônios e histórias de outros Monstros" — Henry Alfred Bugalho — Oficina Editora, 2013.

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