No dia 3 de maio de 1907, o célebre historiador e professor inglês James Dowden desembarcava com sua jovem esposa em Mafley, na Escócia, onde contava continuar suas pesquisas históricas no calmo cenário de um castelo medieval entre campos e alagadiços. O local tinha o trágico nome de “Sítio dos Enforcados”, mas o castelo era lindo, erguendo suas torres e ameias altas, num fundo de floresta de pinheiros seculares que lhe davam a graça severa de um quadro de Holbain.
O castelo só abrigava na ocasião alguns criados ainda bem estilados: o jardineiro com dois ajudantes e o mordomo Peter Cramer, uma espécie de gigante cheio de resolução e energia, mas de aspecto simpático. Os hóspedes eram muitos raros na região e o próprio castelo servia muitas vezes de hotel aos estudiosos que lá se quisessem abrigar quando munidos de regular autorização das Universidades de Cambridge. O professor Dowden poderia ter a certeza de poder concluir os seus estudos com a desejada tranquilidade de espírito. Na manhã seguinte à sua chegada saiu em visita de investigações no povoado da redondeza e Mrs. Dowden também o imitou, tomando, porem, a direção contrária. A jovem senhora passou pelas ruas principais da aldeia e quando voltava de regresso ao castelo, parou um instante no meio da estrada para observar melhor um velho camponês ocupado em rachar a golpes de machado o poderoso tronco de uma nogueira secular:
— “Pobre linda árvore! — pensou — Que pena sacrificá-la, quando estava ainda com vida!”
Ia seguir pelo seu caminho, mas notou um rapazinho mal vestido, magro e de aparência doentia que lhe fazia grandes gestos emitindo uma espécie de miado com expressão de quem implora algo de muito difícil. Mrs. Dowden deu-lhe uma moeda, mas o rapazinho rejeitou-a docemente, insistindo em seus gestos e miados incompreensíveis. A jovem senhora, assustada, fez menção dc correr, mas o pobrezinho, então, fugiu desabaladamente.
Na mesma tarde, depois do jantar, os dois cônjuges contaram reciprocamente as aventuras do dia e suas impressões. Eram alternadamente interessantes e alegres e às onze horas foram-se deitar. À meia noite, Mrs. Dowden sonhava rever o velho camponês, enquanto abatia as árvores com fortes e retumbantes golpes de machado, quando de repente acordou!
No silêncio da noite, no entanto, ouviu realmente o ribombo de fortes golpes surdos que pareciam vir de debaixo da terra. Assustada, chamou o marido:
— “James! James! Não ouves?”
O professor também acordou e ouviu! Ambos precipitaram-se fora da cama e tocaram a campainha.
Alguns minutos depois desciam de seus quartos os criados, as mucamas, o jardineiro, e Peter Cramer, o mordomo, que morava na ala esquerda do castelo. Calmo e sorridente, este não parecia estar absolutamente impressionado, mas, no entanto, não tomava nenhuma iniciativa:
— “Vamos! Coragem, Peter! Precisamos ver o que isto é!”.
E tomando do revólver, o professor Dowden dirigiu-se para a escadaria que descia para o subterrâneo, enquanto que um ribombo mais forte atroava no castelo. Parecia que algo nas adegas tivesse desmoronado. Os dois homens, seguidos pelo jardineiro, precipitaram-se escadas abaixo e iam atravessar o largo corredor que os separava da porta dos subterrâneos, quando uma pesada poltrona que estava encostada à parede se levantou e voou em sentido diagonal sobre a cabeça dos três homens e foi cair mais adiante. O hercúleo Peter parecia ter empalidecido:
— “Lá! lá! — murmurava com a voz sumida, estendendo a mão para um canto do local: — Senti agora mesmo a mão gelada daquele fantasma que desapareceu lá, no canto!”. Mas ninguém pôde descobrir algo de mais positivo que justificasse aqueles fenômenos.
Na manhã seguinte, procurando com maior calma e cuidados na adega, verificaram, com espanto, que uma grossa e pesada tábua de pau ferro havia sido tirada dos ganchos que a prendiam à parede e que estava no chão, do outro lado do local. Ela também devia ter “voado” percorrendo a mesma trajetória que já havia feito a cadeira!
Na noite seguinte, Peter e o jardineiro ficaram de guarda numa sala na rês do chão. Estavam já quase adormecendo, quando ouviram as mesmas pancadas provenientes do fundo da adega e em seguida o estampido de um objeto muito pesado que caísse ao chão. Os dois saltaram de pé e iam correndo para o local de onde vinha o barulho, quando também desta vez uma cadeira pulou para o alto como se estivesse animada e Na terceira noite efetuaram-se, os idênticos fenômenos e já toda a aldeia e suas redondezas estavam em alvoroço! Da vila Ben-Newis, distante alguns quilômetros, foi enviado um comissário de polícia como seu cão-lobo ensinado, que fazia maravilhas. O belo animal foi levado até a adega onde começou logo a raspar furiosamente no mesmo local onde, por três vezes, tinha ido cair a tábua de “pau-ferro” e muito cavou, fazendo fundo buraco, até parecer o cadáver de uma mulher.
Quem seria? Como estava lá enterrada? Quem a teria assassinado, pois era evidente que se tratava de um crime? Após feitas as investigações necessárias, averiguou-se que se tratava do corpo de Madalena Irving, jovem estalajadeira, que tinha desaparecido do castelo no ano anterior. A impressão causada por estes acontecimentos foi enorme em toda a Inglaterra! Cientistas e espíritas escreveram longos artigos intitulados: “Trágicas comunicações do Além”, “Fenômenos de levantamento; móveis e objetos pesados que voam sozinhos!”. — “Espectros brancos e carícias gélidas!”.
Todo o mundo crente (e o descrente) vivia em grande curiosidade e alvoroço!
Muitos dias se passaram assim, sem que nada pudesse dar a impressão de que viria próxima uma solução para o estranho caso, quando, de repente, se deu um golpe de cena! As contínuas indagações da polícia sobre o assassínio de Madalena Irving fizeram nascer suspeitas em relação ao mordomo Peter! Preso e atormentado com mil perguntas acabou confessando:
— “É verdade — disse chorando, arrependido. — Eu gostava de Madalena e ela não fazia caso nenhum de mim! De uma feita consegui fazê-la entrar no parque sob o pretexto de dar-lhe umas flores; quis beijá-la, ela esbofeteou-me; perdi a cabeça! Estrangulei-a e depois a enterrei na adega! Que Deus me perdoe! Porque agora ela me persegue! Ela me chama! Ela me chama! Inventei a história dos espectros e das mãos geladas... Consegui impressionar o jardineiro, consegui, no escuro, dar a impressão de que a cadeira voava através da adega... Tudo isso para desnortear a atenção dos que me poderiam suspeitar... Mas foi tudo inútil! Ela me chama!... Ela me chama!”.
Peter parecia ter perdido a razão e embora essas declarações tirassem todo o caráter sobrenatural do triste caso, o eixo dos acontecimentos que haviam alvoroçado à castelo e todo o mundo ao redor ainda permanecia inexplicável.
Só dois dias depois se descobriu a verdadeira chave do mistério! Saindo a passeio com o marido, Mrs. Dowden encontrou outra vez o rapazinho surdo-mudo a quem havia dado uma esmola no dia de sua chegada.
Ele aproximou-se novamente e recomeçou com os mesmos gestos e os insistentes miados a procurar fazer-se entender a respeito de algo que devia ser importante. Mr. Dowden, impressionado, levou-o para o castelo e, finalmente, o infeliz conseguiu comunicar aos assistentes o seu recado!
O rapazinho, só no mundo, havia sido muitas vezes socorrido por Madalena Irving e certa tarde, por acaso, surpreendeu Peter, quando transportava o corpo da pobre moça para a adega do desabitado castelo, onde a enterrou! Obcecado por aquela dolorosa lembrança o menino queria fazer conhecer a todos o covarde assassínio, mas ninguém o compreendia! Como poderia fazer? Levar alguém até o lugar certo, no subterrâneo do castelo, onde estava enterrado o corpo de sua benfeitora? O hercúleo Peter não deixaria ninguém lá entrar, porque se outrem não pudesse compreender, ele certamente suspeitaria logo das intenções do menino e tudo estaria perdido, sem contar a vingança que Peter não hesitaria em por em prática para se libertar da perigosa testemunha. Que fazer Santo Deus?
Quando o casal Dowden veio habitar o castelo, ele esforçou-se para explicar o seu segredo à jovem senhora, mas ela não poderia alcançar o seu intuito e o menino, já desesperado, idealizou outro plano. As barras de ferro que cerravam as aberturas postas na altura do teto das adegas do castelo não dariam passagem a um homem, para o seu corpinho magro, seria fácil passar entre ás grades e introduzir-se no subterrâneo para lá chamar a atenção dos moradores do castelo por qualquer meio que tivesse ao seu alcance. O resto, Deus faria para facilitar a descoberta do crime!
O menino dormia num abrigo de feno e alta noite, por três vezes seguidas, tinha-se introduzido na trágica adega! Os rumores estranhos, os objetos atirados de encontro ao local da sepultura, eram seus desesperados chamados de “Surdo-Mudo” para se fazer compreender e, finalmente, tinha conseguido o seu intento!
A sua benfeitora ia ser vingada e, sem o querer, ela, ainda depois de morta, o devia proteger, pois o professor Dowden, impressionado pela astuciosa e previdente inteligência do rapazinho, fê-lo internar e instruir num instituto para surdos-mudos, de onde saiu aos 21 anos, já homem feito e apto a poder viver uma vida útil e proveitosa para ele próprio e para os seus semelhantes.
Texto de Itala Gomes Vaz de Carvalho
Fonte: A Noite Illustrada - Supplemento Semanal - 06/06/1944.
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