"...Guillemin deu um grito de horror e sua mente esclareceu-se. Aquela mulher ali sentada e imóvel, quem seria? De um salto aproximou-se e tocou-a! Era um cadáver mumificado, coberto com uma poeira azulada, os cabelos ainda louros, dourados, cobrindo-lhe os ombros e as olheiras fundas, vazias. Era Flora, a noiva perdida!..."
Carlos Gomes viveu longos anos na Itália em sua propriedade, a “Vila Brasília”, em Maggianico, perto de Lecco, na Lombardia, sítio que ele adorava pelo encanto da paisagem, inspiradora de cânticos e melodias bucólicas que perpassam com encantadora eloquência em toda a sua obra musical. Na encosta do Monte Resegone, que se avistava ao longe, dos terraços da Vila Brasília, ainda permaneciam as ruínas do Castelo de Trappio, cujos torreões guardaram por muito tempo doloroso segredo.
Certa manhã do mês de julho de 1720, o jovem conde Guillemin, último descendente de antigos e poderosos feudatários na região, percorria a cavalo a estrada ao longo das faldas do Resegone, quando o tempo, virando repentinamente como sempre sucede naquelas paragens, desabou em tremenda tempestade com chuva de pedra e raios, obrigando o cavaleiro e sua comitiva a pedir hospitalidade no vasto e tenebroso castelo do Trappio (nome que significa laço, ardil, engano ou cilada).
A construção medieval, generosamente ampliada em tempos posteriores, erguia-se sobre uma elevação escarpada, coberta de espessa vegetação, a poucos passos do caminho percorrido pelo tropel dos jovens viajantes. Hoje, penso eu, as ruínas da vetusta morada, já devem ter completamente desaparecido para dar maior espaço às casinhas da aldeia que vinha surgindo em redor dele.
A comitiva fora respeitosamente recebida pelo guarda, por sua mulher e filhas, únicos habitantes do castelo construído, de um lado, inteiramente a pique sobre o fundo de um precipício, as paredes furadas por muitas sacadas e janelas de grades, dando para fossos cheios de água e plantas espinhosas.
As mulheres puseram-se em grande azáfama para preparar uma ceia digna de tão nobres hóspedes, enquanto que o guarda contava-lhes a trágica história daquela estranha morada.
De havia vinte anos, os velhos senhores do Castelo de Trappio, barões de Cotignano, haviam abandonado a propriedade, após o misterioso desaparecimento de sua única filha Flora.
Apenas completando os dezoito anos, linda e boníssima, a moça havia sido pedida em casamento por um rico senhor de Florença, o jovem e guapo marquês de Adamanti. A união encantava a todos; aos noivos, às famílias e aos parentes. As núpcias foram decididas imediatamente. Apenas o tempo necessário para bordar o rico enxoval e cedo chegou o dia auspicioso e tão ansiosamente esperado.
Terminada a cerimônia nupcial na capela do castelo, os convidados reuniram-se em torno das amplas mesas, magnificamente preparadas nas galerias do rés-do-chão, para o suntuoso banquete. A loura, formosa nubente em sua longa veste azul, cor do céu, parecia resplandecente de felicidade.
Terminado o ágape e na espera que a noite diminuísse o calor daquela tarde de agosto, permitindo que fossem iniciadas as danças, um dos jovens convidados propôs uma partida de “esconde-esconde”, jogo muito em voga, naqueles tempos, nas amplas moradas fidalgas. Todos aceitaram a proposta com júbilo e depois de uma hora de alegres fugas, de perseguições e surpresas, entremeadas de soantes e frescas risadas, ecoando pelos tortuosos e longos corredores, pelas escadas e pelos mais recônditos quartos do castelo, a numerosa e jucunda reunião ouviu o toque do sino que anunciava o inicio do baile.
Todos correram para os salões iluminados; jovens e donzelas, mas só faltava a noiva! Talvez muito mais conhecedora de todos os meandros de sua casa natal, estivesse ela tão bem escondida, que não tinha podido ouvir o sinal que anunciava o final da brincadeira?
Chamaram-na, porem, não respondeu! O noivo, os amigos, cheios de curiosidade, recomeçaram a caça em cada vão de parede, em cada esconderijo, ou armário, porem em vão. Flora não fora encontrada! Todos, então, parentes, amigos, criados e convidados, impressionados por aquele estranho silêncio, debandaram-se em todas as direções do castelo à procura de Flora. Teria ela desmaiado em algum canto, impossibilitada de responder? Estaria doente, sofredora? Tudo foi revistado; muros e paredes examinados, o forro da casa, as adegas, as cozinhas e as cavalariças, mas em vão! Uma sensação de grande consternação e pavor começou a pesar em todos os ânimos. As arcadas dos pátios e dos salões ressoavam com os longos e angustiosos chamados do noivo:
— Flora! Flora! Flora!
Alguns camponeses, cheios de generosa compaixão, desceram amarrados por cordas presas à cinta até o fundo do abismo de rochedos, no temor de que a mocinha, de um terraço ou sacada, tivesse talvez caído ao fundo da escarpa? Mas não foi encontrada!
O faustoso dia de núpcias mergulhou na escuridão de uma temerosa tarde de luto!
Os barões e o noivo abandonaram desde então o castelo que, havia vinte anos, não era mais visitado por eles! A trágica morada só representava para os infelizes uma espaventosa lembrança e um horrendo túmulo!
A história do guarda havia perturbado a alegre assembléia e principalmente a Guillemin, de ânimo delicado e sensível. Mas, horas depois, os temperamentos vivazes e a mocidade imperiosa daquele alegre grupo de rapazes mudaram o rumo dos pensamentos. A ceia estava pronta e sentaram-se todos à mesa. Durante a refeição, Guillemin não pronunciou palavra! Preocupado, ar tristonho, passou todo o tempo acariciando um belo e gordo gato pardo, que se tinha acocorado sobre a cadeira, ao seu lado, como a lhe pedir carinho.
A tempestade, no entanto, continuava com idêntica violência e um dos rapazes quis inventar algo de divertido para esperar a hora de continuar a viagem.
“E por que não faríamos também nós uma partida de “esconde-esconde”?”
A proposta naquele momento, depois das confidências do guarda, pareceu a todos perigosa e audaz, e talvez, por isso mesmo, foi aceita com geral agrado! A comitiva separou-se em dois grupos. Um deveria esconder-se e o outro procurar. O conde Guillemin foi um dos primeiros a desaparecer, como se aquele divertimento o interessasse mais do que aos outros.
Ei-lo, correndo pelos corredores e escadas recônditos, chegar num ambiente vasto, quase escuro, com velhos afrescos nas paredes e uma porta ao fundo, dando para outro corredor de onde vinha um forte cheiro de mofo. De súbito ouviu passos furtivos que faziam gemer a escada de madeira pela qual tinha descido até o local onde se achava, e instintivamente procurou um esconderijo melhor. Apoiou-se, então, rente ao muro, numa depressão da parede, em forma de nicho oval, procurando fazer-se pequenino, invisível, bem encostado à superfície lisa que o envolvia quase como num berço e, de repente, sentiu-se transportado além do local onde estava, fora do quarto, num ambiente negro, sem ar nem luz para onde o arremessara a própria parede que com ele tinha girado sobre si.
No primeiro momento, não compreendeu o que se estava passando, julgou ser maravilhoso o esconderijo que o acaso lhe havia feito encontrar e apenas ouviu dissipar-se ao longe o ruído dos passos da pessoa que o perseguia e que tinha passado a poucos centímetros de distância, apenas separada dele pela espessura daquela parede mágica, procurou às apalpadelas encontrar a manivela da porta que lhe havia dado ingresso para o local escuro onde se achava, mas nada encontrou; a parede lisa estendia-se igualmente fria de um a outro lado, como numa sala de banho, nenhuma saliência nem interstício no material de construção fazia-lhe adivinhar qualquer abertura que o libertasse daquela prisão onde o ar era irrespirável. Seria mister sair dali!
Apalpando as paredes em torno com as mãos nervosas, sentiu finalmente uma pequena cavidade, apenas bastante larga para introduzir um dedo, e percebeu no fundo algo de metálico. Empurrou. Um ruído cavernoso, prolongando-se ao longe, respondeu ao seu gesto e, ao mesmo tempo, abriu-se diante dele um largo vão na parede dando acesso a um patamar com alguns degraus que desciam para uma vasta sala semi-obscura, toda em arcos, que mais parecia uma prisão ou um túmulo subterrâneo. Na altura do teto, duas estreitas aberturas engradadas, deixavam entrar um pouco de ar e luz. Ao longo das paredes, viam-se alinhadas muitas armaduras, entremeando móveis pesados, de estilo, uma larga mesa e algumas poltronas de espaldar alto.
Tudo estava envolto numa cor cinzenta, teias de aranha e um forte cheiro de mofo regelavam as veias. Sítio certamente reservado havia séculos, ao esquecimento e à morte?
Guillemin arregalava os olhos, na ânsia de encontrar uma saída que o libertasse daquele pesadelo e, no entanto, sim, numa das poltronas estava alguém sentado?
Surpreendido e simultaneamente reanimado, aproximou-se. Não havia que temer, desde que outro ser humano lá estava na calma atitude de quem repousa. Quem sabe, uma das filhas do guarda, que também tomava parte na brincadeira de “esconde-esconde”? Era, sem dúvida, uma mulher, que, no entanto, não fez o mínimo gesto ao deparar o intruso que penetrara no seu esconderijo.
— “Senhorita?” — perguntou timidamente Guillemin. Silêncio absoluto!
O jovem aproximou-se. Seria uma estátua? Uma boneca? Um manequim? Sobre a mesa, coberta de poeira, ao lado de alguns outros objetos, um grande livro de couro estava aberto pelo meio, onde se lia algo escrito a carvão com espessos caracteres. Apurando a vista, na meia escuridão do local o jovem conseguiu ler o seguinte:
— Quem entrar aqui, recomende a sua alma a Deus, pois nunca mais conseguirá sair. — Flora.
Guillemin deu um grito de horror e sua mente esclareceu-se. Aquela mulher ali sentada e imóvel, quem seria? De um salto aproximou-se e tocou-a! Era um cadáver mumificado, coberto com uma poeira azulada, os cabelos ainda louros, dourados, cobrindo-lhe os ombros e as olheiras fundas, vazias. Era Flora, a noiva perdida!
Como louco Guillemin pôs-se a gritar, a chamar em altos brados, mas sua voz não ultrapassava as muralhas daquela pavorosa prisão que muda como uma tumba!
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Guillemin, todavia, foi salvo no segundo dia do horrendo cativeiro, enquanto prostrado pela angústia e a fome, nem força tinha mais para se erguer do solo, sentiu como que uma carícia perpassar-lhe sobre uma das mãos. Levantando a cabeça, quase demente viu o gato pardo do guarda ao seu lado! O animalzinho, que havia quarenta e oito horas, ele tinha acariciado e nutrido de iguarias, o reconhecia agora, roçando-se de encontro ao amigo que o amimara com tanto afeto.
Guillemin procurou, então, acariciá-lo, não assustá-lo, pronunciando palavras carinhosas. Quem sabe quantas vezes o animalzinho tinha lá entrado pelas estreitas aberturas do teto, à cata de ratos e furões? Guillemin julgou rever um amigo e recobrou energia e coragem. Amarrou solidamente o seu lenço brasonado no pescoço do gato e procurou empurrá-lo para a abertura, olhando-o afetuosamente como a lhe confiar um recado e uma incumbência.
Do estratagema surtiu êxito. Os companheiros do conde e o guarda souberam finalmente descobrir por onde o gato passava e demolindo a grossa parede exterior do castelo, no sítio exato por onde o animalzinho se introduzira no edifício, pelas ameias da parede, conseguiram libertar Guillemin do trágico calabouço.
Foi assim desvelado o tenebroso mistério do Castelo de Trappio, mas nem Carlos Gomes, nem Ponchielli acharam possível fazer um bom libreto de ópera com a triste história da loura noivinha, morta de fome no esconderijo da fidalga morada medieval do monte Resegone.
Texto adaptado de Itala Gomes Vaz de Carvalho
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