quarta-feira, 16 de outubro de 2013

O Espírito Mau


"Pan... pan... pan... Enquanto a doença rebelde vai consumindo lentamente e inexoravelmente o enfermo, a família assombrada ouve um som sincrônico, metódico alucinante... Um carpinteiro invisível, com um martelo, também invisível, prega as tábuas de um caixão, horas mortas da noite, na casa rústica do velho camponês. A aldeia de Norfolk vive emocionada ante o fato misterioso. O espírito mau! Pan... pan... pan!..."

Antes de começar a minha narrativa, recordemos as célebres palavras de Pasteur: "Nós outros, pacientes perscrutadores da natureza, enriquecidos pelas descobertas dos nossos predecessores, munidos dos instrumentos mais delicados, armados dos severos métodos experimentais, tropeçamos a cada passo nas investigações à procura da verdade e percebemos que o mundo material, nas suas mínimas manifestações, é quase sempre outro e não esse que percebemos".

Incubam-se outros de discutir, comentar, contradizer ou repelir as ideias do grande homem. Eu prefiro narrar um fato.

Convém advertir, desde já, que estou longe de ser o que aí chamam de "carola". Antes, pelo contrário, sou o que há de mais cético e pirrônico entre os "são-thomés" que abundam atualmente nesse nosso mundozinho cada vez menos crendeiro.

A explicação disso, é, aliás, facílima: sou descendente de uma família de mágicos e prestidigitadores célebres, que durante sucessivas décadas se celebrizou nos grandes palcos europeus e, apesar de ideia de maravilhoso a que costumam subordinar a palavra magia branca, negra, amarela, ou cor de burro quando foge, nós nunca acreditamos nessa coisa de "sobrenatural", seja qual for o nome ou teoria com que se disfarce.

O meu pai, por exemplo, implicava solenemente com o baixo espiritismo e uma das tarefas a que se entregava com maior entusiasmo era a desmascarar impostores, descobrir fraudes, desencantar assombrações. Nessas lutas em que se empenhava constantemente, levava sempre a vantagem proporcionada pela suas habilidades e argúcia de mágico dos palcos londrinos.

Essas qualidades e disposições espirituais de meu pai eu não só as herdei como desenvolvi e cultivei com orgulho.

Entretanto...

Um dos fatos mais extraordinários da minha vida ocorreu em 1924 no interior da Inglaterra. Andava eu naquela ocasião em Norfolk em visita a velhos conhecidos e em descanso. Uma tarde estava eu na hospedaria, conversando com um dos habitantes do lugar.

Era um velho supersticioso e, como seria lógico, poucos momentos depois de iniciarmos a palestra, o homem orientou-se para os assuntos que mais o apaixonavam.

E disse-me que havia um espírito mau numa cabana a pouca distância da aldeia.

— Espírito mau?

— Sim, senhor. Existe na cabana um menino muito doente — explicou o homem com a sua voz cansada. — Não melhora... Não melhora porque há em casa uma alma penada que o persegue. Talvez algum "mandado"... O pobre menino morrerá. De nada valem os remédios que o doutor lhe manda dor. O espírito mal...

Essa explicação ingênua fez-me sorrir.

— Senhor... Com coisas do outro mundo não se brinca! falou o homem com veemência. — Se o senhor tivesse visto...

— Pode-se ver?

— Pode=se, sim, senhor. Eu o levarei lá.

A humilde cabana pertencia a um pastor. Informaram-me lá que o pobre menino estava num quarto acima com uma rebelde pneumonia e que o médico havia sido chamado em tempo, mas o doentinho cava vez mais piorava. O pai estava abatido em desespero e eu procurei falar-lhe acerca do espírito mau.

— Sim, meu senhor! Há uma alma penada nesta casa. O senhor poderá ouvi-la, às vezes, durante cerca de meia hora, outras vezes, apenas durante uns cinco minutos.

— Que espécie de som? Gritos? Cantos? Gemidos?

— Nada disso, meu senhor. A alma penada bate com um martelo. É como se estive pregando tábuas de um caixão: pan, pan, pan!... Isso enlouquece a gente. Parece estar preparando o caixão do meu filho. É horrível!

— Já ouviu no próprio quarto onde está o menino doente?

O homem tornou-se lívido como se eu falasse de uma catástrofe.

— Não fale isso, senhor. Se isso acontecer o meu pobre filhinho nunca mais verá a luz do sol.

Senti verdadeira piedade pelo pobre pai e por toda aquela gente simples do campo. A que estado de angústia e terrores podem conduzir a suas crendices, as suas superstições! Procurei consolá-lo, diminuir-lhe o pavor. Se me fosse possível desvendar o mistério do fantasma batedor de pregos, talvez isso lhe proporcionasse um grande alívio e mais confiança. Manifestei o meu desejo de ouvir o tal espírito mau e o homem concordou prontamente. À noite, a mulher exausta e acabrunhada foi-se deitar. Eu e o camponês ficamos perto da cozinha, num quarto, à esquerda, fumando os nossos cachimbos e de raro em raro trocando algumas palavras, à luz tênue e vasquejante de uma lamparina de querosene.

Subitamente...

Era meia hora depois da meia noite. O rosto do camponês transfigurou-se numa expressão de terror. O seu olhar dirigiu-se a cozinha, para a porta da sala fronteira, a sala de visitas... Camarinhas de suor desciam-lhe pela testa enrugada. Então, eu comecei a ouvir o som inconfundível: Pan... pan... pan!... Era um martelo, pausadamente, metodicamente, regularmente, batendo um prego.

Pus de lado o meu cachimbo, atravessei a cozinha, empurrei a porta da sala de visitas e entrei corajosamente.

A sala estava erma.

Fiquei estupefato. Não sou supersticioso nem sofro de alucinações, mas não tinha a menor dúvida de haver ouvido distintamente as pancadas de um martelo metendo um prego em madeira.

Está claro que no dia seguinte eu já não encontrava razões para rir do terror supersticioso dos pobres camponeses e após algumas garrafas de cerveja me animei a discutir o mistério.

— Escuta, meu velho — falei ao pastor — se há um espírito mau, provavelmente existirá outra espécie de espírito que possa combatê-lo e até expulsá-lo de sua casa. Ainda não pensou nisso?

I sso era evidentemente transigir e aceitar a ideia da existência do espírito mau, pois a realidade é que com os meus recursos pessoais me sentia inteiramente desarmado para combater o carpinteiro invisível.

O homem ficou silencioso, baforando fumaradas do seu cachimbo; depois falou, balançando tristemente a cabeça:

— Isso há, senhor! Mas eu não sei lidar com espíritos... Gente que já não é deste mundo... Ah, mas o senhor teve uma boa ideia... A cigana...

— Cigana?

— Sim, eu conheço uma cigana que é feiticeira e deve andar agora com a caravana a quatro léguas daqui... Oh... ela seria capaz de dar u m jeito nisso... Se eu pudesse ir buscá-la a tempo...

O remanescente da superstição infantil, que dormitava no fundo da minh'alma de cidadão consciente, despertou em mim. Deixei o meu companheiro e, arranjando um cavalo, parti apressado em busco do acampamento de ciganos. Não me custou muito descobrir o paradeiro da tribo errante. Havia três ou quatro carroças um pouco afastadas do acampamento e uma delas era a morada da velha bruxa.

Após as informações necessárias bati à porta. Esperei cerca de um minuto até que a porta de madeira se abriu e uma mulher feia, rosto rugoso, surgiu envolta nos trajes característicos, xale de cores berrantes, saia de veludo, um espartilho, onde se viam remanescentes de contas e ouropéis pendentes. A sua cabeça estava envolvida numa espécie de lenço grande listrado de vermelho e azul; Cerca de noventa anos de idade.

— Que deseja, meu senhor? inquiriu ela com voz trêmula. — O senhor quer tirar a sorte?

Balancei a cabeça e meti-lhe entre os dedos alguns shillings.

— Escuta uma coisa, mãezinha — falei num tom humilde e carinhoso. — Já ouviu falar em espírito mau?

— Já ouvi falar em muitos espíritos maus — disse ela. — Sim, mas que quer dizer com essa pergunta?

Contei o fato que havia presenciado na casa do velho camponês de Norfolk, a respeito do carpinteiro invisível. Quando terminei, ela soltou uma risadinha velha de gente cansada.

— Ah... que dúvida, moço! É um espírito mau. Almas penadas! Quer levar o menino para o outro mundo. Eu sei como é que a gente luta com elas, mas essas coisas não se podem fazer andar a torto e a direito, não, senhor...

Procurei convencê-la da melhor forma possível, mas a mulher relutava. Depois de muitos argumentos inúteis, meti-lhe na mão uma nota de libra, com promessa de mais depois. Já era um argumento mais forte.

— Vai, minha velha, fazer bem! Salvar um pobre menino, coitadinho!...

Na manhã seguinte o menino estava ainda mais fraquinho, mas ao por do sol a velha cigana chegou, acompanhada por um homem, também cigano, velho, e, tal qual ela, boca desdentada e trôpego. Traziam na mão uma caixinha de papelão como essas em que se guardam envelopes, e eu não pude ver-lhe o conteúdo, mas pareceu-me ter-lhe distinguido algo semelhante a dentes de alho.

Foi aí que eu tive a ocasião de presenciar um dos fatos mais impressionantes da minha vida.

Antes de mais nada deram uma volta em torno da casa; fecharam todas as janelas a seguir. Depois desarrolharam uma garrafa em que havia um líquido avermelhado e saíram borrifando as janelas, as paredes e as roupas deixadas ao acaso. Taparam com trapos todas as fendas e buracos de determinado tamanho. Depois de tudo isso feito a velha cigana tirou vários dentes de alho e esfregou-os contras as portas e janelas. Sentaram-se ambos num banco, apagaram as luzes. Ficamos esperando na escuridão.

A uma hora da madrugada, mais ou menos, o espírito carpinteiro chegou... ou pelo menos foi essa a minha conclusão...

"Pan... pan... pan...", as pancadas persistentes do martelo começaram e se fazer ouvir na cozinha, com uma bulha infernal... A alma do velho camponês devia estar-lhe toda nos olhos. Como estávamos todos juntos ao leito do doentinho, podíamos perceber-lhe a respiração angustiada intercalada de gemidos débeis... Ao som das marteladas agitava-se, gemia aflito.

Apesar de estar toda fechada a casa e todas as luzes permanecessem apagadas, pudemos distinguir na penumbra a velha cigana dar um salto e correr em direção à caixinha que havia trazido. O seu vulto naquelas circunstâncias tinha algo de fantástico e metia medo. Tirou de dentro da cainha um frasco, desarrolhou-o. Riscou um fósforo e, a luz de uma tênue chama, rolos de fumo começaram a espreguiçar-se e a expandir-se no ar com um cheiro acre. O espírito carpinteiro continuava na sua faina diabólica e ininterrupta na cozinha. Então o odor começou a se intensificar cada vez mais e a se tornar cada vez mais forte.

Na cozinha dava-se o inverso: as pancadas do martelo tornavam-se cada vez mais fracas. A cigana tinha uma atitude de êxtase que infundia medo. Era a feiticeira combatendo poderes estranhos. Dos seus lábios saiam sons guturais, palavras ciciadas. Subitamente mudou de atitude, segurou o companheiro pelo ombro.

— Vai prendê-lo, Todan! Agora já não poderá escapar.

O homem nada disse. Apanhou um dos frascos, agora vazio, e encaminhou-se para a cozinha. Demorou-se lá uns quinze minutos, depois voltou. Abriram todas as janelas e o ar renovou naquele ambiente lôbrego. O homem então informou a todos de que o espírito mau estava preso no frasco.

Arranjou uma picareta com o camponês, fez um buraco no chão a pouca distância da casa, atirou nele o frasco, enterrando-o...

Tirei do bolso outra libra e entreguei à cigana.

É verdade que tudo aquilo podia ser considerado uma grande farsa. A fumaça, o perfume, os dentes de alho, as portas e as janelas fechadas, os sortilégios da bruxa, tudo enfim, poderia ter como fito exclusivo sugestionar os assistentes, mas o inexplicável, o inegável e a cessação das pancadas do martelo do carpinteiro fantasma. O enterro da assombração também foi um fato que noutras circunstâncias me teria provocado estrondosas gargalhadas... Depois os ciganos partiram, investiguei toda a casa a procura de uma explicação racional para o fato. Não foi possível.

Pela primeira vez na vida estava eu diante de um acontecimento inexplicável.

A ideia de um espírito mau enterrado numa garrafa, por um lado me repugnava e parecia ridícula, por isso evitei o mais possível fazer referências ao fato. Apenas me limitava a confirmar com a cabeça a narrativa do camponês entusiasmado e me resignei ante a realidade insofismável do desaparecimento das pancadas e melhoras do menino.

Passei uma semana impressionado em Norfolk e, à medida que o tempo corria, mais forte se tornava a impressão. Sentia necessidade de melhores explicações. A velha bruxa talvez se conformasse em falar a respeito desse outro mundo do qual parecia entender tanto. Sim, senhor! Há realmente almas penadas e espíritos maus, indivíduos que, depois de mortos se deixam dominar por uma ideia má, uma paixão perversa e estúpida e se põem a perseguir os vivos, a assustá-los, a fazer-lhes mal. E há também os bons. E dizer-se que eu passei metade da existência combatendo teimosamente a verdade. Que me valera afinal aquele discernimento de que tanto me orgulhava? Oh... inferno! A ideia se impunha.

Eu necessitava de luzes. Precisa renegar-me. Mandar ao diabo toda a inteligência e argúcia.

Só a velha cigana me poderia por em contato com a verdade.

Tomei um automóvel e fui encontrar o acampamento de ciganos muitas léguas à frente.

Depois de três dias de insistência e de gratificá-lo com cem libras, o casal fez-me jurar sob palavra de honra, em nome de Deus, etc., e mandou-me, finalmente, entrar na carroça.

— Fala você, Todan! disse a velha acocorando-se a um canto. — Dê as explicações.

O velho Todan acendeu o cachimbo e encarou-me com os olhos fundos.

— Senhor, não julgue que para compreender o mistério do espírito mau seja necessário mais de uma explicação.

— Sim... sim... — respondi eu curioso.

— Em primeiro lugar tenha em mente que o fantasma carpinteiro só apareceu na casa do camponês de Norfolk depois que nos passamos naquele lugar há uma semana.

— E que tem isso?

— Quer dizer que foi um dos membros da nossa tribo quem lá pôs tal assombração, na esperança de que mais tarde o camponês viesse a procurar a nossa bruxa. Não repare senhor. Nós agora temos a sua palavra de honra e eu confio...

— Mas botou assombração na casa! Como?

O homem abriu uma bolsinha de couro. Tirou de dentro dois pequenos pedaços de chumbo. Mostrou-nos.

— Não é em toda casa que podemos fazer isso. É preciso antes de tudo que a casa esteja situada em lugar onde faça muito vento, na beira da praia ou no alto de um morro como aquela. Outra circunstância favorável é a credulidade da família.

— Sim...

— Enquanto toda a família do camponês de Nolfolk se reunia na sala para tirar a sorte com uma cigana, um de nossos companheiros pendurou esses dois pedaços de chumbo junto à janela do oitão. Preso a linha finíssima, ao sopro do vento, à noite, isso toma impulso e fica ao vai-e-vem como o pêndulo de um relógio. Encontrando como obstáculo as tábuas finíssimas da janela os pedacinhos de chumbo ficam geralmente dando pancadas regulares. Quando o vento pára, está claro que as pancadas cessam. Durante o dia as pancadas tornam-se imperceptíveis no meio de mil outros ruídos. Mas nas horas caladas da noite...

Deu uma risadinha canalha:

— No fundo as pancadas não se parecem muito com marteladas, mas o senhor sabe... a imaginação da gente mal-assombrada se incumbe de argumentar e exagerar as coisas...

— Ah... isso é verdade. Mas o menino...

— O menino já estava doente de pneumonia. A cigana que tirou a sorte, aproveitou a oportunidade para lançar a ideia da existência do espírito mau, batedor de martelo. O senhor compreende: um menino de dez anos já possui a superstição dos pais. Primeiro, ao ouvir as marteladas, sugestionou-se para piorar; depois com o exorcismo sugestionou-se para melhorar. Além disso, a pessoa que pendurou os pedacinhos de chumbo no oitão é hábil no desempenho da tarefa.

Eu estava maravilhado com a simplicidade das coisas.

Não censurei os ciganos.

Num mundo imperfeito como o nosso, onde a virtude está longe de imperar e os homens de serem santos, aquele ardil dos ciganos pareceu-me justo, razoável e honestíssimo. Por que não?

Na luta pela existência há de haver sempre vítimas e cada um peleja com as armas que possui.


por Edward Kennedy 

Fonte: Fonte: A Noite Illustrada - Supplemento Semanal - 03/01/1934.

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