sexta-feira, 26 de abril de 2013

O endiabrado Mandim

No mundo marítimo existe um personagem endiabrado nas suas atitudes de reação. Quando ele quer uma coisa tem de se fazer o que ele quer, sob pena das hostilidades não demorarem muito. Mandim tem um domínio insuperável. As águas obedecem às suas ordens e os peixes se conduzem conforme os seus desejos de chefe. O pescador precisa andar muito direito porque do contrário sofrerá as consequências. 

Também o duende pede pouco. Não exige muita coisa, não. Ele mantém um luxo que não há meio de relaxar. Em todos os outros costuma ceder, mas num deles faz finca-pé, segura-se e não há meio de afrouxar. De modo que não permite a pescaria no dia dos mortos. E o jangadeiro que se der ao gosto de contrariar essa vontade, pode ficar certo de que sofrerá as consequências de um fracasso completo, nada conseguindo, voltando do mar com as mãos vazias, abanando. No samburá nem uma agulha quanto mais cavala.

Mandim considera-se proprietário único do oceano. Pelo menos do trecho que fica entre o Bessa e a Praia Formosa. A guarda que faz do dia de finados vem de um fato de significação bem humana. Teria naufragado um navio depois dos arrecifes que procedia das bandas da África carregado de negros para a lavoura paraibana. Vinha cheio, entupido mesmo, de coculo. Era tanta gente, que se deu uma catástrofe completa — e o único que poderia ter-se salvado foi exatamente o preto maioral, de nome Mandim. Mas renunciou ao propósito de defender a vida quando viu que os seus companheiros haviam sucumbido nos embates com as ondas traiçoeiras. E deixou-se morrer.

Por uma coincidência, teria acontecido a tragédia exatamente no dia de finados. A autoridade do comandante se passou para outro plano: ficou dirigindo o fiel respeito a certas praxes num campo assinalado pelo sacrifício de tantas existências. Quem pescar naquele dia, se arrepende. Quando muito poderá contar a história.

Sabe-se de um mulato falastrão que teimou em ganhar o oceano contra as ordens do mito que são conhecidas através da tradição. Saiu com o tempo bom, soprando nordeste suave. Largou-se para o alto na esperança de pescar muita garajuba e muita cióba. Depressa a noite chegou, pegando o marinheiro quase de repente — foi coisa mesmo de supetão. Com pouco ele principiou a ver umas luzes ao longe. E as luzes aumentando de volume. Só podia ser um navio iluminado feericamente. E o negócio se aproximando, se aproximando, se aproximando. Era de uma extensão formidável,:mais que um transatlântico, parecia antes um mundo que corria veloz na direção do pescador. E que, sem dúvida, iria esmagar a sua jangada, como um inseto miserável de tão insignificante.

Não eram luzes de eletricidade. Tinham parentesco próximo com fogo-fátuo. O ruído que fazia aquilo que vinha vindo rapidamente era um ruído infernal. Gritos se confundindo com exclamações pavorosas; gemidos lancinantes que se tornavam medonhos dentro da noite. E os peixes saltando desadoradamente como se estivessem muito contentes. Se era o vento, soprava forte e grosso, mais parecendo querer levar tudo de cambalhota. Não havia outro recurso senão fazer o impossível para regressar à praia.

O pescador, então, não quis mais conversa, danou-se para trás, aproveitando a correnteza para mudar de situação. Descobriu a estrela-guia e no seu rumo segurou o leme. A carreira era vertiginosa e de vez em quando olhava a visão se aproximando nos seus lumes de todas as cores. Chegou um momento que sentiu a situação quase perdida. Na confusão ouvia vozes mansas cantando o seu mal-assombrado.

Mandim, mandão, mandá,
Todos morreram no mar,
Longe da terra, bá,
Marabá, má, marabá,
Morrer quis Mandim, mandá

O acompanhamento era num tom fúnebre de cortar coração. Mas que história triste? Para que fora se meter nesse embrulho? Duvidar para quê? Nunca mais haveria de contrariar nada.

Acreditaria em tudo que viesse com a marca do invisível. De em diante seria assim. E o estribilho sem cessar na voz do vento da tempestade.

A terra ficou atrás,
Mandim,
Nunca mais, nunca mais

A lição teria servido ao mulato que havia já viajado por outras terras. Ficou sabendo de uma vez por todas que o fantasma tem força. Tem querer. E quando determina, não admite providência em contrário. Pescar no dia de finados que outro fosse e não ele, que ficara ensinado para sempre. Sentia-se feliz em haver saído são e salvo do embrulho.

Mandim era realmente uma potência que não podia, como não pode, ser contrariado nos seus luxos de mando. Veio de longe, trouxe sua gente, naufragou, morreram todos. Quis sacrificar-se voluntariamente na companhia de sua gente. Em compensação requeria respeito e que se guardasse o dia do ano, ou da semana, a sexta-feira. Não admitia pesca. Os peixes que folgassem. E quem quisesse mexer consigo que se metesse com muita coragem para suportar o repuxo e perder.
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Vidal, Ademar. Lendas e superstições; contos populares brasileiros. Rio de Janeiro, Empresa Gráfica O Cruzeiro, 1950, p.39-41

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