Mito corrente dos mais populares em todo o território nacional,
apresenta curiosas variantes em cada região. De São Paulo, a chamada
“zona velha” figura entre as mais ricas em valores folclóricos. Ali,
mais precisamente em Botucatu, fizemos estes apontamentos.
É o mais corrente em todo o município e, sem muitas variantes, nos
municípios vizinhos de Bofete, Piramboia, Itatinga e Avaré. É igualmente
conhecido nas cidades. Um dos primeiros ferroviários a residir em
Botucatu, mais tarde aposentado e transferido para Sorocaba, referiu ali
a Aloísio de Almeida seu encontro com um lobisomem urbano, à noite, na
então rua do Comércio, próximo ao Bosque.
A única característica
própria, neste caso, era de que ia o lobisomem muito vagarosamente, como
se cansado. Possuía longas orelhas tatalantes, produzindo ruído
semelhante ao de matracas e trazia aberta a boca.
Por três maneiras se pode tornar lobisomem: por sina, gosto e
mordida. O destino marca inexoravelmente para o lobisomem o sétimo filho
homem de um casal qualquer que por incúria ou descrença, não receba
como padrinho ao irmão mais velho. Será lobisomem por gosto, e se o
desejar, quem depois de vinte anos sentir atração irresistível pelo
sangue, excrementos de galinha ou pelas andanças noturnas.
O processo de
encantamentos é comum. Encruzilhada. Sexta-feira. Meia-noite.
Espojamento na areia. Nó nas mangas do paletó. A terceira forma é
consequência das duas primeiras. Se um lobisomem de qualquer destas
espécies morde a canela de um homem, este poderá ou não tornar-se por
sua vez um lobisomem segundo o estado de pureza de sua alma. Se a vítima
foi um cão e no mês de agosto, estará “louco”. Ficará “arejando” para o
resto da vida se o fato ocorrer em qualquer outro mês.
E varia a hora de saída do lobisomem. Aquele que cumpre condenação do
destino, já estará a vaguear pelas estradas desde as 10 horas. O
voluntário, porém, requer a meia-noite. Câmara Cascudo, em sua Geografia dos mitos brasileiros,
refere que já às 23 horas, o lobisomem está transformado. Mas a hora de
se recolher é invariavelmente a mesma: duas da madrugada, imediatamente
após o cantar dos galos.
Às vezes, o desencantamento ocorre naturalmente: depois de sete anos
de fadário, se o infeliz não tiver cometido sacrilégio algum contra
igreja ou atacado viúvas. Pode também ser provocado graças a um ligeiro
ferimento a faca, atingindo-se, de preferência, as patas dianteiras.
O
desencantamento poderá apresentar duas reações: se cumpria disposição do
destino, agradece e cumula de bens o autor da façanha; se porém,
tratava-se de um lobisomem voluntário, passará a odiar o intrometido
contra quem tentará todas as vezes que lhe for possível, pois desde o
momento do desencantamento, sua alma estará condenada à perdição.
(Note-se aqui, a perfeita driscriminação das reações entre as duas
formas de lobisomem. Geralmente, este prisma do mito não se encontra bem
elucidado, confundindo-se seriamente os porques do proceder posterior
do ex-licantropo).
São bem distintos o lobisomem rural e aquele urbano. Este é, de certa
forma, ordeiro. Vive arredio, fugitivo do olhar humano. Vasculha os
galinheiros à cata de excrementos recentes de aves de uma cor
determinada, teme os cães e rodeia as cozinha sprocurando pela água de
barrela que aprecia como sua melhor bebida.
Não é grande corredor e fica
largo tempo à espreita das casas e coisas que lhe aptecem. (Talvez se
deva ligar os detalhes da paciente espera e das visitas aos galinheiros
ao fato de que antigamente, assim procediam os não raros raposões que
abundavam pela zona, que a simplicidade da gente impressionável,
facilmente identificou com o mito comum).
O lobisomem do campo é que parece condenado a tacar gente. (Qual a
razão? Seria simples fato de que o campo, a mata, a treva e as longas
extensões desabitadas sempre se prestaram melhor aos encantamentos? Ou o
resíduo daquelas práticas sanguinárias que Klabund assinalou muito bem
como praticadas pelos camponeses de toda a Europa, na Idade Média?).
Possivelmente, também, influência do lobisomem italiano, o lupo mannaro,
através de uma contribuição ao nosso folclore graças à larga massa de
imigrantes fixados em nosso meio rural.
Bebe até saciar-se, porém sempre
agoniado pela necessidade de sustar sua corrida. Quem se vê perseguido
por ele encontra abrigo nos cemitérios ou pátios de capelas. Não teme
símbolos individuais de proteção, nem exorcismos, mas uma cruz preparada
com barba de bode e em seguida benta pela Quaresma mantém-no afastado
de casa.
Os padres e, especialmente, a mãe do infeliz podem reconhecer seu
drama, mesmo quando não no couro da fera. Moço que toda manhã de sábado
(notem o dia da semana) amanhece sofrendo náuseas denuncia-se. Pior
ainda se for magro, pálido, fastidioso, com só os olhos estranhamente
luminosos.
Não ataca gente de seu sangue, mas, se casado, a esposa corre de
contínuo risco. Somente pode salvar-se na fuga e nada a livrará da morte
se alcançada e dominada por ele. (Influência, talvez e longínqua, do
lobisomem gaúcho — um despeitado que paga o castigo de haver sido infiel
com uma comadre da esposa).
Tamanho e forma? Aproxima-se mais de um perdigueiro médio. Cabeça
sempre baixa, de ordinário trote regular, boca desmesuradamente aberta. E
o característico infalível: enormes orelhas balouçantes, provocando o
ruído que gera pavor e ao mesmo tempo serve como aviso.
Existem na mesma região paulista variações interessantes do e sobre o mito tão popular. Voltaremos para tratar delas.
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Fonte: NEVES, Guilherme Santos. “Folclore”. A Gazeta. Vitória, 07 de julho de 1963
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