segunda-feira, 21 de março de 2016

A Farra dos Mortos



Naquela noite “seu” Antônio não conseguia dormir. Ligou a televisão, não gostou do que estava passando, desligou. Pegou o rádio de pilhas, seu inseparável companheiro, nada de interessante. Resolveu ir à janela do quarto para apreciar o movimento da rua. Nada. A rua estava deserta. Era a primeira vez que ficava insone e aquilo o deixava nervoso. Nunca havia perdido o sono antes.

Um pouco mais adiante do edifício onde ele morava, ficava o cemitério, todo murado, sem iluminação e muito arborizado o que o deixava mais escuro ainda. Os olhos do velhinho desviaram-se para lá. Olhava e pensava: “um dia estarei ali, no silêncio eterno...” e um arrepio percorreu seu corpo.

Ficou muito tempo olhando o cemitério. Viu as horas e pensou: “quase duas horas e nada de sono...”.

Caminhou pelo quarto, foi até a cozinha, voltou novamente à janela. Apagou a luz do quarto. Ficou ali, parado, pensamento distante quando de repente viu algo no cemitério que chamou sua atenção. Era uma luz, fraca é bem verdade, mas era uma luz, bem ali no meio das sepulturas. A princípio ficou com medo. Fechou a cortina e ficou olhando pela fresta. Mais uma luz apareceu. Já eram duas.Ficaram juntas e tremulantes como se um leve vento tentasse apagá-las. Mais outra e “seu” Antônio pensou: “Meu Deus, os mortos estão saindo da tumba...” Mesmo assim continuou na janela. Tremia.

As luzes foram aumentando, ele já não conseguia contá-las, só sabia que junto com elas vultos vestidos de negro faziam um ritual esquisito. Levantavam os braços, circulavam para lá e para cá, outros estavam sentados nos túmulos e de vez em quando saltavam para o chão. Ficavam em círculo como se estivessem rezando e rapidamente levantavam-se com os braços para cima como numa espécie de saudação. Vez por outra apareciam pequenos pontos luminosos seguidos de uma neblina branca. O homem pensou: “será a dança dos espíritos malditos...!”

Lembrou de algumas histórias de terror que havia lido na juventude. O tempo corria. “Seu” Antônio olhou para o relógio, quatro e trinta da manhã e os mortos continuavam lá naquela espécie de orgia fantasmagórica.

Num átimo de segundo, as luzes sumiram e tudo voltou às escuras. O homem, ainda tremendo, ficou parado sem forças para se afastar da janela. Quando o fez foi para rezar e pedir a Deus perdão pelos seus pecados. Talvez aquela aparição fosse um aviso para ele, pensava: - “preciso orar mais...”.

Quando o dia amanheceu, como sempre fazia, foi buscar pão e leite, e na padaria relatou aos amigos o que havia presenciado durante a madrugada. Todos riram, menos uma velhinha que estava na fila para pagar o pão. Ela também havia visto aquilo da janela do seu quarto e não era a primeira vez. – “faz muito tempo que isso acontece, começa por volta das duas horas e vai até, mais ou menos, às quatro e meia da manhã” – disse ela. Nunca dissera nada para não tachada de louca, pois não dormia muito e ficava perambulando pela casa durante a madrugada.

No dia seguinte, mesmo morrendo de medo, lá estava “seu” Antônio de prontidão na janela do quarto. Deitara-se bem cedinho, vinte horas e trinta minutos. Pusera o relógio para despertar às duas só para ver se os fantasmas saiam novamente para um novo ritual. Não deu outra. Tudo aconteceu como no dia anterior.

De manhã encontrou-se com a velhinha na porta da padaria e comentaram o acontecido. E assim, por muitos dias, o homem tornou-se um madrugador só para ver a “farra dos mortos”.

A notícia espalhou-se pelo bairro. O responsável pelo cemitério foi comunicado.

“Seu” Antônio, já acostumado com aquele fato, lá estava à janela, na hora exata para ver a cena.

Os mortos foram chegando com suas luzes bruxuleantes, fizeram os mesmos movimentos; os que estavam em cima dos túmulos saltaram para chão, fizeram a rodinha, levantaram os braços, apareceram os pontinhos luminosos e a neblina, gesticularam. “Seu” Antônio já não sentia medo, habituara-se àquilo.

De repente, apareceram luzes diferentes, eram fortes. O homem arregalou os olhos e pensou: “tem fantasma novo na “farra”. Os novos “mortos” movimentavam-se com muita agilidade, como se estivessem apressados. Um dos antigos, com sua fraca luzinha, embrenhou-se pelo meio das tumbas sendo perseguido por um da luz forte, que o trouxe de volta ao grupo que formava uma fila indiana.

As tênues luzinhas já não estavam mais acesas. “Seu” Antônio, com o movimento das luzes fortes, percebeu que as roupas dos novos “mortos” eram de cor diferente das dos antigos. Ficou pensando: -“Meu Deus, será que os mortos voltam?”.

Agora todos seguiam em procissão na direção da porta do cemitério e tudo voltou à escuridão. O homem ainda ficou alguns segundos à janela, depois voltou para a cama e ficou remoendo seus pensamentos a respeito do que vira.

Quando adentrou à padaria, pela manhã, para pegar seu pão, o dono, com um risinho maroto, exclamou:

- Sr. Antônio! Que bom que chegou. Sabe aqueles fantasmas que senhor vê, todas as madrugadas, lá no cemitério?

- O que tem? – perguntou o homem.

- Ora, não são mortos, nem fantasmas, nem nada do outro mundo. É o safado do Ditinho e a sua turma que pulam o muro do cemitério para armar a banca de jogos de azar e assim fugirem da polícia. Usam roupas escuras, as velas, que os parentes do mortos deixam nas campas e que não ardem totalmente, têm sacola de plástico de supermercado para recolher o lixo, tais como pontas de cigarros, papel, latas de cerveja e tudo mais. “Nada de pistas”, dizia Ditinho.

- Era um mini-cassino ao ar livre que rendia muito dinheiro ao malandro. Só que esta madrugada ele se deu mal. O administrador do cemitério ficou de campana e quando eles estavam no melhor do jogo, os “homens” chegaram. O contraventor bem que tentou fugir, mas foi agarrado pelo policial. Precisava ver a cara do salafrário e da sua turma quando foram egos em flagrante. - Graças ao senhor, seu Antônio, a justiça foi feita...

E o português da padaria riu, até não poder mais, lembrando da primeira vez que seu Antônio lhe contou que vira os mortos realizando uma verdadeira “farra”, de madrugada, no cemitério da cidade.


Autora: Maria Hilda de J. Alão.

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