segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Guinefort, o Cão Santo

No final do século XII e começo do século XIII, existiu um pequeno castelo na diocese de Lyon (400 km ao sul de Paris). Era uma propriedade modesta, que não tinha vigias - só alguns cães de guarda. Certo dia, o dono do castelo e a esposa precisaram ir até uma cidade vizinha. Deixaram o filho pequeno sozinho por algumas horas. E, bem nessa ausência, algo terrível aconteceu: uma cobra entrou no quarto da criança. Um dos cachorros, um galgo chamado Guinefort, notou o perigo e atacou a serpente com várias mordidas. Matou a cobra, mas a criança e o quarto ficaram todos sujos de sangue.

Algumas horas depois, quando o casal voltou de viagem e se deparou com aquela cena, a mãe entrou em pânico. Ela achou que o sangue era do filho, e que a criança havia sido atacada por Guinefort. Enfurecido, o marido pegou sua espada e, com um movimento rápido, cortou a cabeça do cachorro. Mas o casal logo viu que a criança estava bem, dormindo em paz. E encontrou a cabeça da serpente jogada num canto do quarto. Eles haviam cometido uma atroz injustiça ao matar o pobre cachorro.

O casal se sentiu em débito com Deus pela intercessão milagrosa de Guinefort, e pelo modo como ela foi ignorada. Envergonhado, o senhor do castelo providenciou ao cachorro um enterro com todas as honras possíveis. O casal se mudou algumas semanas depois. A história foi sendo repetida, e aumentada, pela população local. Guinefort caiu na boca do povo, passou a ser adorado como um mártir cristão - e recebeu dos camponeses locais o título de santo. Mulheres de diversas regiões da França passaram a visitar o túmulo do animal, na esperança de alcançarem suas bênçãos e curarem seus filhos doentes.

A Igreja não reconheceu a santidade do cachorro. O frei dominicano Estevão de Bourbon, que trabalhava para a Inquisição medieval, escreveu um relato do caso. Para ele, aquilo era um absurdo, e as adoradoras de Guinefort estavam negligenciando a saúde de seus filhos, já que o animal não era milagroso. Mas, mesmo tendo os poderes da Inquisição ao seu dispor, o frei preferiu não processar as mulheres por heresia. Provavelmente ele percebeu que não existia maldade nas ações dessas mães, que só queriam ver os filhos curados.



Antes do século 13, quando os atos heroicos de Guinefort o transformaram em santo popular, os europeus já acreditavam que os cachorros tinham poderes místicos. Baseados nisso, muitos senhores e cavaleiros medievais empregaram cachorros entre seus trabalhadores, na esperança de que doenças e ferimentos humanos fossem curados com lambidas, e para que os soldados fossem seguramente escoltados pelos animais ao retornarem de batalhas muito violentas. O frei Estevão não mediu esforços para acabar com as superstições em torno de Guinefort, e chegou a exigir a exumação dos restos mortais do cachorro, ordenando a seus subordinados que a ossada fosse queimada e enterrada bem longe de Lyon. Há indícios de que o frei tenha até ameaçado os camponeses com excomunhão e exílio, caso eles insistissem em adorar Guinefort.

Essa pressão provavelmente teve algum resultado, mas não acabou com a veneração ao cachorro. O frei Estevão morreu em 1260, cinco anos depois de concluir seu tratado sobre a fé (no qual dava especial atenção a mitos e superstições). Mas a crença em Guinefort acabou indo muito mais longe. A prática de apelar ao cachorro para a cura de bebês e crianças durou até o século 19, e algumas regiões do interior da França tinham até mapas para orientar quem peregrinava até o túmulo original do cachorro milagroso. Mesmo no século 20, entre as décadas de 1960 e 1970, o heroísmo de Guinefort ainda era celebrado nos arredores de Lyon.


Texto de Bruno Mosconi

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