Um cavalheiro sóbrio e grave, cujo nome não darei nesta história, porque ela é antes produto de uma enfermidade do espírito do que de uma real deficiência do cérebro, tinha, por um longo desuso da parte viva de seu sentido, parte que não lhe faltava em outros tempos, se deixado afundar numa condição muito baixa de espírito, e permitido que a hipocondria se espraiasse, em vapor e fumaças, em sua cabeça.
Era uma enfermidade que tinha suas crises e seus intervalos. Algumas vezes, ele via clara e justamente as coisas, mas, outras vezes, enxergava estrelas ao meio-dia e demônios de noite. Numa palavra, o mundo era uma aparição para a sua faculdade imaginativa quando a doença prevalecia e o aborrecimento dele tomava conta. Tudo isso ele não sabia explicar, nem podia ajudar a operação de seu físico por qualquer dos poderes de que dispunha para curar-se.
Aconteceu que ficou fora de casa, na residência de um amigo, mais tarde do que de costume, uma noite, mas, como havia lua cheia e ele tinha a companhia de um empregado, sentia-se bem, e mostrou-se animado e mesmo alegre, com uma forte soma de bom humor - mais do que se observara nele por muito tempo.
Conhecia perfeitamente o caminho de volta, porque não se encontrava a mais de três milhas da cidade em que vivia, e estava muito bem montado. Mas, embora a lua brilhasse no céu, perturbou-o o acidente de que havia nuvens, e, mais do que tudo, de que uma nuvem muito escura apareceu subitamente (quer dizer, sem que ele a notasse, e assim subitamente para ele) e pairou sobre sua cabeça, o que tornou tudo muito escuro. E, para mais perturbá-lo, ainda, começou a chover violentamente.
Nessas condições, estando muito bem montado, como eu já disse, resolveu galopar, pois não estava a mais de duas milhas da cidade. Assim, esporeando o cavalo, fê-lo correr. O empregado, cujo nome era Gervásio, não estando tão bem provido de montaria, ficou para trás. A escuridão e a chuva juntas irritaram um tanto o nosso cavalheiro, mas como eram coisas inesperadas fizeram-no galopar com mais velocidade, em vez de diminuir o ritmo do cavalo.
No curso do caminho havia um pequeno rio, mas atravessava-o uma boa ponte, bem provida de muralhas, de ambos os lados, o que fazia com que naquele ponto não houvesse perigo, como não havia perigo no resto da estrada. O cavalheiro manteve a velocidade para cruzar a ponte, quando, já a tendo percorrido até a metade, seu cavalo parou de supetão e refugou, pendendo para a direita. O cavalheiro nada viu, de princípio, e não perdeu muito a calma por causa do acidente, mas esporeou o cavalo para que prosseguisse. O cavalo deu dois ou três passos, então voltou a estacar, relinchou, e fez movimentos para voltar atrás. Então o cavalheiro, escrutando a noite para ver o que espantara o cavalo e o que se passava, divisou dois grandes olhos abertos, os quais, como ele disse, olhavam diretamente para ele.
Nesse momento, ele se sentiu muito amedrontado, mas, a essa altura, ouviu o seu empregado Gervásio aproximar-se. Quando Gervásio chegou bem perto, a primeira coisa que ouviu seu patrão dizer foi:
- Deus me abençoe, é o demônio!
A essas palavras, Gervásio, sujeito de pouca coragem, teve tanto medo quanto seu patrão. No entanto, o patrão, um pouco animado porque ouviu seu empregado aproximar-se, esporeou novamente o cavalo e ordenou a Gervásio que chegasse mais perto, mas ele, atemorizado, não se apressou. Por fim, com muito trabalho, o patrão, abusando das esporas, passou pela ponte e pela criatura com olhos largos, criatura que, como a luz aumentara um pouco, ele afirmou positivamente, depois de passar, que era um grande urso preto e que devia, conseqüentemente, ser o demônio.
Embora Gervásio se encontrasse bastante perto, temendo mais, contudo, que seu patrão o pusesse na frente, manteve-se tão apartado quanto podia. Quando o seu patrão o chamou ele respondeu, mas não avançou, ou, pelo menos, não se apressou. Mas, vendo que seu patrão passara pelo obstáculo e que ele próprio estava obrigado a seguir, prosseguiu lentamente. E quando chegou à ponte ele viu aquilo que fazia o cavalo do patrão relinchar e refugar, do que vocês ouvirão mais, adiante.
O cavalo do patrão, tendo ultrapassado a dificuldade, não necessitou mais de esporas, mas voou como o vento, como acontece com cavalos amedrontados. E, como a chuva continuava, seu patrão que, por todos os motivos, queria chegar em casa, deixou-o ir, o que fez com que chegasse a sua casa e nela penetrasse antes que o empregado Gervásio o alcançasse.
O patrão, logo que chegou à luz, desmaiou, e tal fora o efeito do medo sobre ele que, quando com muita dificuldade fizeram-no recobrar a consciência, continuou a passar mal. E quando sua mulher, e uma irmã que morava em casa com ele, tão sucumbida à hipocondria quanto ele próprio, vieram saber o que se passara, ele contou-lhes uma história formal de que na ponte encontrara o diabo. Disse que se colocara na saída da ponte, na parte esquerda, no canto do muro. Acrescentou que estacara e contemplara a figura, e que pôde distintamente perceber que se tratava do diabo na forma de um urso. Deu outros detalhes tão exatos e singulares que não havia lugar para dúvidas de que vira uma aparição, e que essa aparição tomara a for¬ma de um grande urso.
Gervásio chegou em casa pouco depois e, indo diretamente para o estábulo, como o devia fazer, para cuidar do cavalo do patrão e do seu próprio, contou ali a história à sua maneira para os outros empregados, e especialmente para dois ou três serventes de cavalheiros vizinhos. E lhes disse que o patrão correra grande perigo de ser jogado por cima da muralha da ponte, porque o cavalo que montava teve medo de um asno que se postara no canto da muralha.
-E foi, de fato, culpa minha - acrescentou Gervásio -, pois se tratava de um cavalo muito jovem, e nunca disse a meu patrão que seu defeito consiste em que não pode suportar a vista de um asno, e nunca se aproxima de semelhante animal se o pode.
-Está você certo de que era um asno? - disseram os outros empregados, entreolhando-se como se estivessem assustados - está você certo, Gervásio?
-Sim - disse Gervásio -, pois logo que meu patrão o ultrapassou, eu alcancei o bicho e bati-lhe com a minha vara. E começou a zurrar, como vocês podem imaginar. E então eu me apartei e o deixei.
-Ora, Gervásio - disseram os empregados -, seu patrão pensa que se tratava do diabo, com tanta certeza como se lhe tivesse falado.
-Lamento que meu patrão tenha sentido tanto medo - disse Gervásio -, mas estou certo que era um asno, e nada mais.
Mas a história se divulgara, e a sua primeira parte espalhou-se pela cidade: que o Senhor... tinha visto o diabo e quase morrera de medo.
Então, circulou a história do empregado Gervásio e fez parecer que a aparição estranha e maravilhosa do Senhor... assumira as proporções normais de um asno, e que o diabo que vira na forma de um urso não era mais do que aquilo que os italianos chamam de um burrico. Isso fez com que muito se rissem os outros do patrão.
No entanto, o pobre Gervásio relutava em retra¬tar-se, e, por esse motivo, perdeu o emprego. E o sábio Senhor... insiste até hoje que viu o diabo e que o reconheceu por seus grandes olhos, embora se saiba que um urso tem os olhos pequenos. Mas não é possível persuadir qualquer pessoa sujeita a pavores de que não viu o diabo, se viu alguma coisa, e se está certa de que não sabe de que se trata.
Era uma enfermidade que tinha suas crises e seus intervalos. Algumas vezes, ele via clara e justamente as coisas, mas, outras vezes, enxergava estrelas ao meio-dia e demônios de noite. Numa palavra, o mundo era uma aparição para a sua faculdade imaginativa quando a doença prevalecia e o aborrecimento dele tomava conta. Tudo isso ele não sabia explicar, nem podia ajudar a operação de seu físico por qualquer dos poderes de que dispunha para curar-se.
Aconteceu que ficou fora de casa, na residência de um amigo, mais tarde do que de costume, uma noite, mas, como havia lua cheia e ele tinha a companhia de um empregado, sentia-se bem, e mostrou-se animado e mesmo alegre, com uma forte soma de bom humor - mais do que se observara nele por muito tempo.
Conhecia perfeitamente o caminho de volta, porque não se encontrava a mais de três milhas da cidade em que vivia, e estava muito bem montado. Mas, embora a lua brilhasse no céu, perturbou-o o acidente de que havia nuvens, e, mais do que tudo, de que uma nuvem muito escura apareceu subitamente (quer dizer, sem que ele a notasse, e assim subitamente para ele) e pairou sobre sua cabeça, o que tornou tudo muito escuro. E, para mais perturbá-lo, ainda, começou a chover violentamente.
Nessas condições, estando muito bem montado, como eu já disse, resolveu galopar, pois não estava a mais de duas milhas da cidade. Assim, esporeando o cavalo, fê-lo correr. O empregado, cujo nome era Gervásio, não estando tão bem provido de montaria, ficou para trás. A escuridão e a chuva juntas irritaram um tanto o nosso cavalheiro, mas como eram coisas inesperadas fizeram-no galopar com mais velocidade, em vez de diminuir o ritmo do cavalo.
No curso do caminho havia um pequeno rio, mas atravessava-o uma boa ponte, bem provida de muralhas, de ambos os lados, o que fazia com que naquele ponto não houvesse perigo, como não havia perigo no resto da estrada. O cavalheiro manteve a velocidade para cruzar a ponte, quando, já a tendo percorrido até a metade, seu cavalo parou de supetão e refugou, pendendo para a direita. O cavalheiro nada viu, de princípio, e não perdeu muito a calma por causa do acidente, mas esporeou o cavalo para que prosseguisse. O cavalo deu dois ou três passos, então voltou a estacar, relinchou, e fez movimentos para voltar atrás. Então o cavalheiro, escrutando a noite para ver o que espantara o cavalo e o que se passava, divisou dois grandes olhos abertos, os quais, como ele disse, olhavam diretamente para ele.
Nesse momento, ele se sentiu muito amedrontado, mas, a essa altura, ouviu o seu empregado Gervásio aproximar-se. Quando Gervásio chegou bem perto, a primeira coisa que ouviu seu patrão dizer foi:
- Deus me abençoe, é o demônio!
A essas palavras, Gervásio, sujeito de pouca coragem, teve tanto medo quanto seu patrão. No entanto, o patrão, um pouco animado porque ouviu seu empregado aproximar-se, esporeou novamente o cavalo e ordenou a Gervásio que chegasse mais perto, mas ele, atemorizado, não se apressou. Por fim, com muito trabalho, o patrão, abusando das esporas, passou pela ponte e pela criatura com olhos largos, criatura que, como a luz aumentara um pouco, ele afirmou positivamente, depois de passar, que era um grande urso preto e que devia, conseqüentemente, ser o demônio.
Embora Gervásio se encontrasse bastante perto, temendo mais, contudo, que seu patrão o pusesse na frente, manteve-se tão apartado quanto podia. Quando o seu patrão o chamou ele respondeu, mas não avançou, ou, pelo menos, não se apressou. Mas, vendo que seu patrão passara pelo obstáculo e que ele próprio estava obrigado a seguir, prosseguiu lentamente. E quando chegou à ponte ele viu aquilo que fazia o cavalo do patrão relinchar e refugar, do que vocês ouvirão mais, adiante.
O cavalo do patrão, tendo ultrapassado a dificuldade, não necessitou mais de esporas, mas voou como o vento, como acontece com cavalos amedrontados. E, como a chuva continuava, seu patrão que, por todos os motivos, queria chegar em casa, deixou-o ir, o que fez com que chegasse a sua casa e nela penetrasse antes que o empregado Gervásio o alcançasse.
O patrão, logo que chegou à luz, desmaiou, e tal fora o efeito do medo sobre ele que, quando com muita dificuldade fizeram-no recobrar a consciência, continuou a passar mal. E quando sua mulher, e uma irmã que morava em casa com ele, tão sucumbida à hipocondria quanto ele próprio, vieram saber o que se passara, ele contou-lhes uma história formal de que na ponte encontrara o diabo. Disse que se colocara na saída da ponte, na parte esquerda, no canto do muro. Acrescentou que estacara e contemplara a figura, e que pôde distintamente perceber que se tratava do diabo na forma de um urso. Deu outros detalhes tão exatos e singulares que não havia lugar para dúvidas de que vira uma aparição, e que essa aparição tomara a for¬ma de um grande urso.
Gervásio chegou em casa pouco depois e, indo diretamente para o estábulo, como o devia fazer, para cuidar do cavalo do patrão e do seu próprio, contou ali a história à sua maneira para os outros empregados, e especialmente para dois ou três serventes de cavalheiros vizinhos. E lhes disse que o patrão correra grande perigo de ser jogado por cima da muralha da ponte, porque o cavalo que montava teve medo de um asno que se postara no canto da muralha.
-E foi, de fato, culpa minha - acrescentou Gervásio -, pois se tratava de um cavalo muito jovem, e nunca disse a meu patrão que seu defeito consiste em que não pode suportar a vista de um asno, e nunca se aproxima de semelhante animal se o pode.
-Está você certo de que era um asno? - disseram os outros empregados, entreolhando-se como se estivessem assustados - está você certo, Gervásio?
-Sim - disse Gervásio -, pois logo que meu patrão o ultrapassou, eu alcancei o bicho e bati-lhe com a minha vara. E começou a zurrar, como vocês podem imaginar. E então eu me apartei e o deixei.
-Ora, Gervásio - disseram os empregados -, seu patrão pensa que se tratava do diabo, com tanta certeza como se lhe tivesse falado.
-Lamento que meu patrão tenha sentido tanto medo - disse Gervásio -, mas estou certo que era um asno, e nada mais.
Mas a história se divulgara, e a sua primeira parte espalhou-se pela cidade: que o Senhor... tinha visto o diabo e quase morrera de medo.
Então, circulou a história do empregado Gervásio e fez parecer que a aparição estranha e maravilhosa do Senhor... assumira as proporções normais de um asno, e que o diabo que vira na forma de um urso não era mais do que aquilo que os italianos chamam de um burrico. Isso fez com que muito se rissem os outros do patrão.
No entanto, o pobre Gervásio relutava em retra¬tar-se, e, por esse motivo, perdeu o emprego. E o sábio Senhor... insiste até hoje que viu o diabo e que o reconheceu por seus grandes olhos, embora se saiba que um urso tem os olhos pequenos. Mas não é possível persuadir qualquer pessoa sujeita a pavores de que não viu o diabo, se viu alguma coisa, e se está certa de que não sabe de que se trata.
Daniel Defoe (1660-1731), o célebre autor de As aventuras de Robinson Crusoé
foi um dos mais prolíficos escritores que se conhece, com mais de 500
títulos publicados. Entre os inúmeros gêneros que abordou (religião,
política, sociologia, história, ficção, poesia) no seu jornal The Review
(que ele escrevia praticamente sozinho). Defoe acreditava profundamente
na reencarnação e escreveu Contos de Fantasmas baseado em entrevistas ou relatos conhecidos. Segundo ele, os episódios aqui
relacionados – com exceção dos que estão agrupados sob o título de
"Falsos fantasmas" – são todos verdadeiros e, em alguns deles, ele
estaria disposta a ir em juízo, levando testemunhas e provas concretas.
"A aparição da senhora Veal" é um dos exemplos.
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