segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Noite na Taverna: Bertram

III - Bertram

But why should I for others groan,
When none will sigh for me!

Childe Harold, I. Byron

Um outro conviva se levantou.

Era uma cabeça ruiva, uma tez branca, uma daquelas criaturas fleumáticas que não hesitarão ao tropeçar num cadáver para ter mão de um fim.

Esvaziou o copo cheio de vinho, e com a barba nas mãos alvas, com os olhos de verde-mar fixos, falou:

— Sabeis, uma mulher levou-me a perdição. Foi ela quem me queimou a fronte nas orgias, e desbotou-me os lábios no ardor dos vinhos e na moleza de seus beijos: quem me fez devassar pálido as longas noites de insônia nas mesas do jogo, e na doidice dos abraços convulsos com que ela me apertava o seio! Foi ela, vós o sabeis, quem fez-me num dia ter três duelos com meus três melhores amigos, abrir três túmulos àqueles que mais me amavam na vida — e depois, depois sentir-me só e abandonado no mundo, como a infanticida que matou o seu filho, ou aquele Mouro infeliz junto a sua Desdêmona pálida!

Pois bem, vou contar-vos uma história que começa pela lembrança desta mulher...

Havia em Cadiz uma donzela... linda daquele moreno das Andaluzas que não há vê-las sob as franjas da mantilha acetinada, com as plantas mimosas, as mãos de alabastro, os olhos que brilham e os lábios de rosa d'Alexandria sem delirar sonhos delas por longas noites ardentes!

Andaluzas! sois muito belas! se o vinho, se as noites de vossa terra, o luar de vossas noites, vossas flores, vossos perfumes são doces, são puros, são embriagadores, vos ainda o sois mais! Oh! por esse eivar a eito de gozos de uma existência fogosa nunca pude esquecer-vos!

Senhores! aí temos vinho de Espanha, enchei os copos: — à saúde das Espanholas!...

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Amei muito essa moça, chamava-se Ângela. Quando eu estava decidido a casar-me com ela, quando após das longas noites perdidas ao relento a espreitar-lhe da sombra um aceno, um adeus, uma flor, quando após tanto desejo e tanta esperança eu sorvi-lhe o primeiro beijo, tive de partir da Espanha para Dinamarca onde me chamava meu pai.

Foi uma noite de soluços e lágrimas, de choros e de esperanças, de beijos e promessas, de amor, de voluptuosidade no presente e de sonhos no futuro... Parti. Dois anos depois foi que voltei. Quando entrei na casa de meu pai, ele estava moribundo; ajoelhou-se no seu leito e agradeceu a Deus ainda ver-me, pôs as mãos na minha cabeça, banhou-me a fronte de lágrimas — eram as últimas — depois deixou-se cair, pôs as mãos no peito, e com os olhos em mim murmurou: Deus!

A voz sufocou-se-lhe na garganta: todos choravam.

Eu também chorava, mas era de saudades de Ângela...

Logo que pude reduzir minha fortuna a dinheiro pus-la no banco de Hamburgo, e parti para a Espanha.

Quando voltei. Ângela estava casada e tinha um filho...

Contudo meu amor não morreu! Nem o dela!

Muito ardentes foram aquelas horas de amor e de lágrimas, de saudades e beijos, de sonhos e maldições pare nos esqueceremos um do outro.

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Uma noite, dois vultos alvejavam nas sombras de um jardim, as folhas tremiam ao ondear de um vestido, as brisas soluçavam aos soluços de dois amantes, e o perfume das violetas que eles pisavam, das rosas e madressilvas que abriam em torno deles era ainda mais doce perdido no perfume dos cabelos soltos de uma mulher...

Essa noite — foi uma loucura! foram poucas horas de sonhos de fogo! e quão breve passaram! Depois a essa noite seguiu-se outra, outra... e muitas noites as folhas sussurraram ao roçar de um passo misterioso, e o vento se embriagou de deleite nas nossas frontes pálidas...

Mas um dia o marido soube tudo: quis representar de Otelo com ela. Doido!...

Era alta noite: eu esperava ver passar nas cortinas brancas a sombra do anjo. Quando passei, uma voz chamou-me. Entrei. — Ângela com os pés nus, o vestido solto, o cabelo desgrenhado e os olhos ardentes tomou-me pela mão... Senti-lhe a mão úmida.... Era escura a escada que subimos: passei a minha mão molhada pela dela por meus lábios . Tinha saibo de sangue.

— Sangue, Ângela! De quem é esse sangue?

A Espanhola sacudiu seus longos cabelos negros e riu-se.

Entramos numa sala. Ela foi buscar uma luz, e deixou-me no escuro.

Procurei, tateando, um lugar para assentar-me: toquei numa mesa. Mas ao passar-lhe a mão senti-a banhada de umidade: além senti uma cabeça fria como neve e molhada de um líquido espesso e meio coagulado. Era sangue...

Quando Ângela veio com a luz, eu vi... Era horrível!... O marido estava degolado.

Era uma estátua de gesso lavada em sangue... Sobre o peito do assassinado estava uma criança de bruços. Ela ergueu-a pelos cabelos... Estava morta também: o sangue que corria das veias rotas de seu peito se misturava com o do pai!

— Vês, Bertram, esse era o meu presente: agora será, negro embora, um sonho do meu passado. Sou tua e tua só. Foi por ti que tive força bastante para tanto crime... Vem, tudo esta pronto, fujamos. A nós o futuro!

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Foi uma vida insana a minha com aquela mulher! Era um viajar sem fim. Ângela vestia-se de homem: era um formoso mancebo assim. No demais ela era como todos os moços libertinos que nas mesas da orgia batiam com a taça na taça dela. Bebia já como uma inglesa, fumava como uma Sultana, montava a cavalo como um Árabe, e atirava as armas como um Espanhol.

Quando o vapor dos licores me ardia a fronte ela ma repousava em seus joelhos, tomava um bandolim e me cantava as modas de sua terra...

Nossos dias eram lançados ao sono como pérolas ao amor: nossas noites sim eram belas!

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Um dia ela partiu: partiu, mas deixou-me os lábios ainda queimados dos seus, e o coração cheio de gérmen de vícios que ela aí lançara. Partiu. Mas sua lembrança ficou como o fantasma de um mau anjo perto de meu leito.

Quis esquecê-la no jogo, nas bebidas, na paixão dos duelos. Tornei-me um ladrão nas cartas, um homem perdido por mulheres e orgias, um espadachim terrível e sem coração.

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Uma noite eu caíra ébrio as portas de um palácio: os cavalos de uma carruagem pisaram-me ao passar e partiram-me a cabeça de encontro à lájea. Acudiram-me desse palácio. Depois amaram-me: a família era um nobre velho viúvo e uma beleza peregrina de dezoito anos. Não era amor de certo o que eu sentia por ela... Não sei o que foi... Era uma fatalidade infernal. A pobre inocente amou-me; e eu, recebido como o hóspede de Deus sob o teto do velho fidalgo, desonrei-lhe a filha, roubei-a, fugi com ela... E o velho teve de chorar suas cãs manchadas na desonra de sua filha, sem poder vingar-se.

Depois enjoei-me dessa mulher. A saciedade é um tédio terrível. Uma noite que eu jogava com Siegfried — o pirata, depois de perder as últimas jóias dela, vendi-a.

A moça envenenou Siegfried logo na primeira noite, e afogou-se...

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Eis aí quem eu sou: se quisesse contar-vos longas histórias do meu viver, vossas vigílias correriam breves demais…

Um dia — era na Itália — saciado de vinho e mulheres eu ia suicidar-me A noite era escura e eu chegara só na praia. Subi num rochedo: daí minha última voz foi uma blasfêmia, meu último adeus uma maldição, meu último... digo mal, porque senti-me erguido nas águas pelo cabelo.

Então na vertigem do afogo o anelo da vida acordou-se em mim. A princípio tinha sido uma cegueira, uma nuvem ante meus olhos, como aos daquele que labuta na trevas. A sede da vida veio ardente: apertei aquele que me socorria: fiz tanto, em uma palavra, que, sem querê-lo, matei-o. Cansado do esforço desmaiei...

Quando recobrei os sentidos estava num escaler de marinheiros que remavam mar em fora. Aí soube eu que meu salvador tinha morrido afogado por minha culpa. Era uma sina, e negra; e por isso ri-me; ri-me, enquanto os filhos do mar choravam.

Chegamos a uma corveta que estava erguendo âncora.

O comandante era um belo homem. Pelas faces vermelhas caiam-lhe os crespos cabelos loiros onde a velhice alvejava algumas cãs.

Ele perguntou-me:

— Quem és?

— Um desgraçado que não pode viver na terra, e não deixaram morrer no mar.

— Queres pois vir a bordo?

— A menos que não prefirais atirar-me ao mar.

— Não o faria: tens uma bela figura. Levar-te-ei comigo. Servirás...

— Servir!?...— e ri-me: depois respondi-lhe frio: deixai que me atire ao mar...

— Não queres servir? queres então viajar de braços cruzados?

— Não: quando for a hora da manobra dormirei: mas quando vier a hora do combate ninguém será mais valente do que eu...

— Muito bem: gosto de ti, disse o velho lobo do mar. Agora que estamos conhecidos Dize-me teu nome e tua história.

— Meu nome é Bertram. Minha história? escutai: o passado é um túmulo! Perguntai ao sepulcro a história do cadáver cujo guarda o segredo... e ele dir-vos-a apenas que tem no seio um corpo que se corrompe! lereis sobre a lousa um nome — e não mais!

O comandante franziu as sobrancelhas, e passou adiante para comandar a manobra.

O comandante trazia a bordo uma bela moça. Criatura pálida, parecera a um poeta o anjo da esperança adormecendo esquecido entre as ondas. Os marinheiros a respeitavam: quando pelas noites de lua ela repousava o braço na amurada e a face na mão aqueles que passavam junto dela se descobriam respeitosos. Nunca ninguém lhe vira olhares de orgulho, nem lhe ouvira palavras de cólera: era uma santa.

Era a mulher do comandante.

Entre aquele homem brutal e valente, rei bravio ao alto mar, esposado, como os Doges de Veneza ao Adriático, à sua garrida corveta — entre aquele homem pois e aquela madona havia um amor de homem como palpita o peito que longas noites abriu-se às luas do oceano solitário, que adormeceu pensando nela ao frio das vagas e ao calor dos trópicos, que suspirou nas horas de quarto, alta noite na amurada do navio, lembrando-a nos nevoeiros da cerração, nas nuvens da tarde… Pobres doidos! parece que esses homens amam muito! A bordo ouvi a muitos marinheiros seus amores singelos: eram moças loiras da Bretanha e da Normandia, ou alguma espanhola de cabelos negros vista ao passar sentada na praia com sua cesta de flores, ou adormecida entre os laranjais cheirosos, ou dançando o fandango lascivo nos bailes ao relento! Houve-as... junto a mim, muitas faces ásperas e tostadas ao sol do mar que se banharam de lágrimas...

Voltemos a história. — O comandante a estremecia como um louco: — um pouco menos que a sua honra, um pouco mais que sua corveta.

E ela!?... ela no meio de sua melancolia, de sua tristeza e sua palidez, ela sorria as vezes quando cismava sozinha, mas era um sorrir tão triste que doía. Coitada!

Um poeta a amaria de joelhos. Uma noite — de certo eu estava ébrio — fiz-lhe uns versos. Na lânguida poesia, eu derramara uma essência preciosa e límpida que ainda não se poluíra no mundo...

Bofé que chorei quando fiz esses versos. Um dia, meses depois, li-os, ri-me deles e de mim; e os atirei ao mar... Era a última folha da minha virgindade que lançava ao esquecimento...

Agora, enchei os copos: o que vou dizer-vos é negro, e uma lembrança horrível, como os pesadelos no Oceano.

Com suas lágrimas, com seus sorrisos, com seus olhos úmidos e os seios intumescidos de suspiros, aquela mulher me enlouquecia as noites. Era como uma vida nova que nascia cheia de desejos, quando eu cria que todos eles eram mortos como crianças afogadas em sangue ao nascer.

Amei-a: por que dizer-vos mais? Ela amou-me também. Uma vez a luz ia límpida e serena sobre as águas, as nuvens eram brancas como um véu recamado de pérolas da noite, o vento cantava nas cordas. Bebi-lhe na pureza desse luar, ao fresco dessa noite, mil beijos nas faces molhadas de lágrimas, como se bebe o orvalho de um lírio cheio. Aquele seio palpitante, o contorno acetinado, apertei-os sobre mim...

O comandante dormia

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Uma vez ao madrugar o gajeiro assinalou um navio. Meia hora depois desconfiou que era um pirata...

Chegávamos cada vez mais perto. Um tiro de pólvora seca da corveta reclamou a bandeira. Não responderam. Deu-se segundo: nada. Então um tiro de bala foi cair nas águas do barco desconhecido como uma luva de duelo. O barco que até então tinha seguido rumo oposto ao nosso e vinha proa contra nossa proa virou de bordo e apresentou-nos seu flanco enfumaçado: um relâmpago correu nas baterias do pirata, um estrondo seguiu-se... e uma nuvem de balas veio morrer perto da corveta.

Ela não dormia, virou de bordo: os navios ficaram lado a lado. À descarga do navio de guerra o pirata estremeceu como se quisesse ir a pique.

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O pirata fugia: a corveta deu-lhe caça: as descargas trocaram-se então mais fortes de ambos os lados.

Enfim o pirata pareceu ceder. Atracaram-se os dois navios como para uma luta. A corveta vomitou sua gente a bordo do inimigo. O combate tornou-se sangrento — era um matadouro!... o chão do navio escorregava de tanto sangue, o mar ansiava cheio de escumas ao boiar de tantos cadáveres. Nesta ocasião sentiu-se uma fumaça que subia do porão. O pirata dera fogo às pólvoras... Apenas a corveta por uma manobra atrevida pôde afastar-se do perigo. Mas a explosão fez-lhe grandes estragos. Alguns minutos depois o barco do pirata voou pelos ares. Era uma cena pavorosa ver entre aquela fogueira de chamas, ao estrondo da pólvora, ao reverberar deslumbrador do fogo nas águas, os homens arrojados ao ar irem cair no oceano.

Uns a meio queimados se atiravam a água, outros com os membros esfolados e a pele a despegar-se-lhes do corpo nadavam ainda entre dores horríveis e morriam torcendo-se em maldições.

A uma légua da cena do combate havia uma praia bravia, cortada de rochedos Aí se salvaram os piratas que puderam fugir.

E nesse tempo enquanto o comandante se batia como um bravo, eu o desonrava como um covarde.

Não sei como se passou o tempo todo que decorreu depois. Foi uma visão de gozos malditos!... eram os amores de Satã e de Eloá, da morte e da vida, no leito do mar.

Quando acordei um dia desse sonho, o navio tinha encalhado num banco de areia: o ranger da quilha a morder na areia gelou a todos... Meu despertar foi a um grito de agonia...

— Olá, mulher, taverneira maldita, não vês que o vinho acabou-se?

Depois foi um quadro horrível! Éramos nós numa jangada no meio do mar. Vós que lestes o Don Juan, que fizestes talvez daquele veneno a vossa Bíblia, que dormistes as noites da saciedade como eu, com a face sobre ele e com os olhos ainda fitos nele, vistes tanta vez amanhecer, sabeis quanto se côa de horror ante aqueles homens atirados ao mar, num mar sem horizonte, ao balanço das águas, que parecem sufocar seu escárnio na mudez fria de uma fatalidade!

Uma noite, a tempestade veio... apenas houve tempo de amarrar nossas munições... Fora mister ver o Oceano bramindo no escuro como um bando de leões com fome, pare saber o que é a borrasca!... fora mister vê-la de uma jangada à luz da tempestade, às blasfêmias dos que não crêem e maldizem, às lágrimas dos que esperam e desesperam, aos soluços dos que tremem e tiritam de susto como aquele que bate a porta do nada... E eu, eu ria: era como o gênio do ceticismo naquele deserto. Cada vaga que varria nossas tábuas descosidas arrastava um homem, mas cada vaga que me rugia aos pés parecia respeitar-me. Era um Oceano como aquele de fogo, onde caíram os anjos perdidos de Milton — o cego: quando eles passavam cortando-as a nado, as águas do pântano de lava se apertavam: a morte era para os filhos de Deus, não pare o bastardo do mal!

Toda aquela noite, passei-a com a mulher do comandante nos braços. Era um himeneu terrível aquele que se consumava entre um descrido e uma mulher pálida que enlouquecia: o tálamo era o oceano, a escuma das vagas era a seda que nos a alcatifava o leito. Em meio daquele concerto de uivos que nos ia ao pé, os gemidos nos sufocavam e nós rolávamos abraçados, atados a um cabo da jangada, por sobre as tábuas...

Quando a aurora veio, restávamos cinco: eu, a mulher do comandante, ele e dois marinheiros…

Alguns dias comemos umas bolachas repassadas da salsugem da água do mar. Depois tudo o que houve de mais horrível se passou...

— Por que empalideces, Solfieri! a vida e assim. Tu o sabes como eu o sei. O que é o homem? é a escuma que ferve hoje na torrente e amanha desmaia, alguma coisa de louco e movediço como a vaga, de fatal como o sepulcro! O que é a existência? Na mocidade é o caleidoscópio das ilusões, vive-se então da seiva do futuro. Depois envelhecemos: quando chegamos aos trinta anos e o suor das agonias nos grisalhou os cabelos antes do tempo e murcharam, como nossas faces, as nossas esperanças, oscilamos entre o passado visionário e este amanhã do velho, gelado e ermo despido como um cadáver que se banha antes de dar a sepultura! Miséria! loucura!

— Muito bem! miséria e loucura! interrompeu uma voz.

O homem que falara era um velho. A fronte se lhe descalvara e longas e fundas rugas a sulcavam: eram ondas que o vento da velhice lhe cavava no mar da vida... Sob espessas sobrancelhas grisalhas lampejavam-lhe os olhos pardos e um espesso bigode lhe cobria parte dos lábios. Trazia um gibão negro e roto, e um manto desbotado, da mesma cor, lhe caia dos ombros.

— Quem és, velho? perguntou o narrador.

— Passava lá fora, a chuva caia a cântaros, a tempestade era medonha, entrei. Boa-noite, senhores! se houver mais uma taça na vossa mesa, enchei-a ate as bordas e beberei convosco.

— Quem és?

—Quem eu sou? na verdade fora difícil dizê-lo: corri muito mundo, a cada instante mudando de nome e de vida. Fui poeta e como poeta cantei. Fui soldado e banhei minha fronte juvenil nos últimos raios de sol da águia de Waterloo. Apertei ao fogo da batalha a mão do homem do século. Bebi numa taverna com Bocage — o português, ajoelhei-me na Itália sobre o túmulo de Dante e fui a Grécia para sonhar como Byron naquele túmulo das glórias do passado. — Quem eu sou? Fui um poeta aos vinte anos, um libertino aos trinta, sou um vagabundo sem pátria e sem crenças aos quarenta. Sentei-me a sombra de todos os sóis, beijei lábios de mulheres de todos os países; e de todo esse peregrinar só trouxe duas lembranças — um amor de mulher que morreu nos meus braços na primeira noite de embriaguez e de febre — e uma agonia de poeta... Dela, tenho uma rosa murcha e a fita que prendia seus cabelos. Dele olhai...

O velho tirou do bolso um embrulho: era um lençol vermelho o invólucro: desataram-no: dentro estava uma caveira.

— Uma caveira! gritaram em torno: és um profanador de sepulturas?

— Olha, moço, se entendes a ciência de Gall e Spurzheim, dize-me pela protuberância dessa fronte, e pelas bossas dessa cabeça quem podia ser esse homem?

— Talvez um poeta... talvez um louco.

— Muito bem! adivinhaste. Só erraste não dizendo que talvez ambas as coisas a um tempo. Sêneca o disse: — a poesia é a insânia. Talvez o gênio seja uma alucinação e o entusiasmo precise da embriaguez para escrever o hino sanguinário e fervoroso de Rouget de l'Isle, ou para, na criação do painel medonho do Cristo morto de Holbein, estudar a corrupção no cadáver. Na vida misteriosa de Dante, nas orgias de Marlowe, no peregrinar de Byron havia uma sombra da doença de Hamlet: quem sabe?

— Mas a que vem tudo isso?

— Não bradastes — miséria e loucura!... vós, almas onde talvez borbulhava o sopro de Deus, cérebros que a luz divindade gênio esclarecia, e que o vinho enchia de vapores e a saciedade de escárnios? Enchei as taças ate a borda! enchei-as e bebei; bebei a lembrança do cérebro que ardeu nesse crânio, da alma que aí habitou, do poeta louco — Werner! e eu bradarei ainda uma vez: — miséria e loucura!

O velho esvaziou o copo, embuçou-se e saiu. Bertram continuou a sua história

— Eu vos dizia que ia passar-se uma coisa horrível: não havia mais alimentos, e no homem despertava a voz do instinto, das entranhas que tinham fome, que pediam seu cevo como o cão do matadouro, fosse embora sangue.

A fome! a sede!... tudo quanto há de mais horrível!...

Na verdade, senhores, o homem é uma criatura perfeita? Estatuário sublime, Deus esgotou no talhar desse mármore todo o seu esmero. Prometeu divino, encheu-lhe o crânio protuberante da luz do gênio. Ergueu-o pela mão, mostrou-lhe o mundo do alto da montanha, como Satã quarenta séculos depois o fez a Cristo, e disse-lhe: Vê, tudo isso e belo — vales e montes, águas do mar que espumam, folhas das florestas que tremem e sussurram como as asas dos meus anjos — tudo isso é teu. Fiz-te o mundo belo no véu purpúreo do crepúsculo, dourei-to aos raios de minha face. Ei-lo rei da terra! banha a fronte olímpica nessas brisas, nesse orvalho, na escuma dessas cataratas. Sonha como a noite, canta como os anjos, dorme entre as flores! Olha! entre as folhas floridas do vale dorme uma criatura branca como o véu das minhas virgens, loira como o reflexo das minhas nuvens, harmoniosa como as aragens do céu nos arvoredos da terra. É tua: acorda-a, ama-a e ela te amará; no seio dela, nas ondas daquele cabelo, afoga-te como o sol entre vapores. Rei no peito dela, rei na terra, vive de amor e crença, de poesia e de beleza, levanta-te, vai, e serás feliz!

Tudo isso é belo, sim!... mas é a ironia mais amarga, a decepção mais árida de todas as ironias e de todas as decepções. Tudo isso se apaga diante de dois fatos muito prosaicos — a fome e a sede.

O gênio, a águia altiva que se perde nas nuvens, que se aquenta no eflúvio da luz mais ardente do sol — cair assim com as asas torpes e verminosas no lodo das charnecas? Poeta! porque no meio do arroubo mais sublime do espírito, uma voz sarcástica e mefistofélica te brada: — meu Faust, ilusões... a realidade é a matéria!?... Deus escreveu L n a ´g k h na fronte de sua criatura! — Don Juan! porque choras a esse beijo morno de Haidea que desmaia-te nos braços?!... a prostituta vender-tos-a amanhã mais queimadores!... Miséria!... E dizer que tudo o que há de mais divino no homem, de mais santo e perfumado na alma se infunde no lodo da realidade, se revolve no charco e ache ainda uma convulsão infame pare dizer — sou feliz!. . .

Isso tudo, senhores, pare dizer-vos uma coisa muito simples... um fato velho e batido, uma pratica do mar, uma lei do naufrágio — a antropofagia.

Dois dias depois de acabados os alimentos, restavam três pessoas: eu, o comandante e ela. — Eram três figuras macilentas como o cadáver, cujos peitos nus arquejavam como a agonia, cujos olhares fundos e sombrios se injetavam de sangue como a loucura.

O uso do mar — não quero dizer a voz da natureza física, o brado do egoísmo do homem —manda a morte de um para a vida de todos. Tiramos a sorte... o comandante teve por lei morrer.

Então o instinto de vida se lhe despertou ainda. Por um dia mais, de existência, mais um dia de fome e sede, de leito úmido e varrido pelos ventos frios do norte, mais umas horas mortas de blasfêmia e de agonia, de esperança e desespero, de orações e descrenças, de febre e de ânsia, o homem ajoelhou-se, chorou, gemeu a meus pés...

— Olhai, dizia o miserável, esperemos até amanhã... Deus terá compaixão de nos... Por vossa mãe, pelas entranhas de vossa mãe! por Deus se ele existe! deixai, deixai-me ainda viver!

Oh! a esperança é pois como uma parasita que morde e despedaça o tronco, mas quando ele cai, quando morre e apodrece, ainda o aperta em seus convulsos braços! Esperar! quando o vento do mar açoita as ondas, quando a escuma do oceano vos lava o corpo lívido e nu, quando o horizonte é deserto e sem termo e as velas que. branqueiam ao longe parecem fugir! Pobre louco!

Eu ri-me do velho. Tinha as entranhas em fogo. Morrer hoje, amanhã, ou depois... tudo me era indiferente, mas hoje eu tinha fome, e ri-me porque tinha fome.

O velho lembrou-me que me acolhera a seu bordo, por piedade de mim, lembrou-me que me amava... e uma torrente de soluços e lágrimas afogava o bravo que nunca empalidecera diante da morte.

Parece que a morte no oceano é terrível para os outros homens: quando o sangue lhes salpica as faces, lhes ensopa as mãos, correm a morte como um rio ao mar, como a cascavel ao fogo. Mas assim... no deserto das águas... eles temem-na, tremem diante da caveira fria da morte!

Eu ri-me porque tinha fome.

Então o homem ergueu-se. A fúria levantou nele com a última agonia. Cambaleava e um suor frio lhe corria no peito descarnado. Apertou-me nos seus braços amarelentos, e lutamos ambos corpo a corpo, peito a peito, pé por pé... por um dia de miséria!

A lua amarelada erguia sua face desbotada, como uma meretriz cansada de uma noite de devassidão, o céu escuro parecia zombar desses dois moribundos que lutavam por uma hora de agonia...

O valente do combate desfalecia... caiu: pus-lhe o pé na garganta, sufoquei-o e expirou...

Não cubrais o rosto com as mãos — faríeis o mesmo... Aquele cadáver foi nosso alimento dois dias...

Depois, as aves do mar já baixavam para partilhar minha presa; e às minhas noites fastientas uma sombra vinha reclamar sua ração de carne humana...

Lancei os restos ao mar...

Eu e a mulher do comandante passamos um dia, dois, sem comer nem beber...

Então ela propôs-me morrer comigo. — Eu disse-lhe que sim. Esse dia foi a última agonia do amor que nos queimava: gastamo-lo em convulsões para sentir ainda o mel fresco da voluptuosidade banhar-nos os lábios... Era o gozo febril que podem ter duas criaturas em delírio de morte. Quando soltei-me dos braços dela a fraqueza a fazia desvairar. O delírio tornava-se mais longo, mais longo: debruçava-se nas ondas e bebia a água salgada, e oferecia-ma nas mãos pálidas, dizendo que era vinho. As gargalhadas frias vinham mais de entuviada...

Estava louca.

Não dormi, não podia dormir: uma modorra ardente me fervia as pálpebras, o hálito de meu peito parecia fogo, meus lábios secos e estalados apenas se orvalhavam de sangue.

Tinha febre no cérebro... e meu estômago tinha fome. Tinha fome como a fera.

Apertei-a nos meus braços, oprimi-lhe nos beiços a minha boca em fogo, apertei-a convulsivo, sufoquei-a. Ela era ainda tão bela!

Não sei que delírio estranho se apoderou de mim. Uma vertigem me rodeava. O mar parecia rir de mim, e rodava em torno, escumante e esverdeado, como um sorvedouro. As nuvens pairavam correndo e pareciam filtrar sangue negro. O vento que me passava nos cabelos murmurava uma lembrança.

De repente senti-me só. Uma onda me arrebatara o cadáver. Eu o vi boiar pálido como suas roupas brancas, seminu, com os cabelos banhados de água; eu via-o erguer-se na escuma das vagas, desaparecer, e boiar de novo; depois não o distingui mais: — era como a escuma das vagas, como um lençol lançado nas águas...

Quantas horas, quantos dias passei naquela modorra nem o sei... Quando acordei desse pesadelo de homem desperto, estava a bordo de um navio.

Era o brigue inglês Swallow, que me salvara...

Olá, taverneira, bastarda de Satã! não vês que tenho sede, e as garrafas estão secas, secas como tua face como nossas gargantas?
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Álvares de Azevedo (Manuel Antônio Álvares de Azevedo), poeta, contista e ensaísta, nasceu em São Paulo em 12 de setembro de 1831, e faleceu o Rio de Janeiro, RJ, em 25 de abril de 1852. Patrono da Cadeira n. 2 da Academia Brasileira de Letras, por escolha de Coelho Neto.

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