quinta-feira, 28 de abril de 2016

O Teste

Cena do filme "No Mundo de 2020" (Soylent Green, 1973).

Na noite anterior ao teste, Les ajudou o pai a estudar na sala de jantar. Jim e Tommy dormiam no andar de cima e Terry estava costurando na sala de estar, o rosto inexpressivo enquanto a agulha se movia rápida e ritmicamente para dentro e para fora do pano.

Tom Parker estava sentado com o corpo ereto, as mãos ossudas e entrecortadas por veias cruzadas em cima da mesa, enquanto os olhos azuis-claros olhavam fixamente para os lábios do filho, como se acreditasse que isso o ajudaria a compreender melhor.

Tinha oitenta anos e esse era o seu quarto teste.

— Bem — disse Les, lendo o modelo de questionário que o Dr. Trask havia fornecido —, repita as seguintes séries de números.

— Séries de números — murmurou Tom, tentando assimilar as palavras à medida que chegavam até ele. Mas as palavras já não eram assimiladas rapidamente; pareciam se demorar nas dobras de seu cérebro, como insetos sobre um animal preguiçoso.

Mentalmente, repetiu as palavras: séries de números... séries de números. Já tinha entendido. Ele olhou para o filho e esperou.

— Então? — disse impaciente, depois de um momento de silêncio.

— Papai, eu já disse a primeira — observou Les.

— Bem... — seu pai tentava encontrar as palavras certas. — Por gentileza, diga-me... Faça-me a gentileza de...

Les suspirou desanimado.

— Oito, cinco, onze, seis — disse ele.

Os velhos lábios se mexeram, as antigas engrenagens da mente de Tom puseram-se em marcha laboriosamente.

— Oito... c-cinco... — os olhos claros piscavam lentamente — onze, seis — concluiu Tom de um só fôlego; então, endireitou as costas, orgulhoso.

Sim, bom, pensou, muito bom. Não iriam fazê-lo de tolo no dia seguinte; derrotara sua lei assassina. Tinha os lábios apertados e as mãos fortemente cruzadas sobre a alva toalha de mesa.

— O quê? — disse ele, piscando os olhos enquanto Les dizia-lhe alguma coisa. — Fale mais alto — disse, irritado.

— Eu já lhe dei outra sequência de números — disse Les sem perder a calma. — Preste atenção, vou lê-la de novo.

Tom se inclinou um pouco, puxando as orelhas.

— Nove, dois, dezesseis, sete, três — disse Les.

Tom pigarreou alto.

— Fale mais devagar — disse ao filho.

Ainda não havia compreendido o significado de tudo isso. Como podiam esperar que alguém guardasse uma sequência de números tão absurdamente longa?

— O quê? O quê? — perguntou raivosamente, enquanto Les lia os números de novo.

— Papai, o examinador fará a leitura das questões ainda mais rapidamente do que eu. Você...

— Compreendo muito bem — disse o pai, interrompendo-o impaciente. — Muito bem. Deixe-me lembrá-lo de que... entretanto, isso não é... não é um teste. Isso é para estudo. E tolice ir tão rápido. Tolice. Tenho de aprender esse... esse teste — terminou ele zangado, com seu filho e com a maneira com que as palavras desejadas se escondiam em sua mente.

Les encolheu os ombros e baixou o olhar novamente para o questionário:

— Nove, dois, dezesseis, sete, três — leu devagar.

— Nove, dois, seis, sete...

— Dezesseis, sete, pai. — Foi o que eu disse.

— Você disse seis, pai.

— Você acha que eu não sei o que disse!

Les fechou os olhos por um instante.

— Tudo bem, pai — disse ele.

— Então, você vai lê-los novamente ou não? — Tom perguntou incisivo.

Les leu os números novamente e, enquanto escutava o pai repetindo a sequência com dificuldade, olhou para Terry na sala de estar.

Ela estava lá sentada, feições imóveis, costurando. Desligara o rádio e Les sabia que ela podia ouvir o seu pai tropeçando nos números.

Ok, disse Les para si mesmo, como se estivesse falando com sua esposa, Ok, eu sei que ele é velho e inútil. Você quer que eu diga isso na cara dele e o apunhale pelas costas? Sei tanto quanto você que ele não vai passar no teste. Permita-me, pelo menos, essa breve hipocrisia. Amanhã, a sentença será dada. Não me obrigue a dizer esta noite e partir o coração desse pobre velho.

— Está certo, creio eu — Les ouviu a voz cheia de dignidade de seu pai dizer e encarou novamente a face magra e enrugada.

— Sim, está certo — apressou-se em confirmar.

Sentiu-se um traidor quando um leve sorriso cintilou no canto da boca de seu pai. Eu o estou enganando, pensou.

— Vamos passar para outra coisa — ele escutou o pai dizer e baixou os olhos rapidamente para as folhas de papel.

O que seria fácil para ele? , pensou, desprezando a si mesmo por tal pensamento.

— Bem, vamos, Leslie — disse o pai com voz tensa. — Não podemos perder tempo.

Tom olhou seu filho folhear as páginas do questionário e cerrou os punhos. No dia seguinte, sua vida estaria em jogo e seu filho simplesmente folheava o teste como se nada de importante fosse acontecer.

— Vamos, vamos — disse ele, com voz chorosa.

Les pegou um lápis com uma corda amarrada e desenhou um círculo pequeno em uma folha de papel em branco. Entregou o lápis ao pai.

— Mantenha a ponta do lápis suspensa sobre o círculo por três minutos — disse ele, subitamente com medo de ter escolhido a questão errada. Já vira as mãos do pai tremerem na hora das refeições, ou se atrapalhando com botões ou zíperes de suas roupas.

Les engoliu em seco, nervosamente, pegou o cronometro, deu a partida e acenou para o pai.

Tom respirou fundo, hesitante, inclinou-se sobre a folha de papel e tentou segurar o lápis por cima do círculo, oscilando ligeiramente. Les o viu apoiar-se sobre o cotovelo, coisa que não seria permitida durante o teste; mas nada disse.

Ficou sentado ali olhando o pai. O colorido da face de seu pai estava desbotando e Les podia ver claramente as pequenas linhas vermelhas de veias estouradas sob a pele de suas bochechas. Olhou a pele ressecada, enrugada salpicada por manchas escuras.

Oitenta anos, pensou. Como se sente um homem quando chega aos 80 anos?

Olhou para Terry de novo. Por um instante, seus olhos se encontraram e nenhum dos dois sorriu ou disse alguma coisa. Então, Terry voltou à costura.

— Acho que os três minutos já se passaram — disse Tom com a voz tensa.

Les consultou o cronômetro.

— Um minuto e meio, pai — disse ele, imaginando se não deveria ter sido melhor ter mentido novamente.

— Bem, então fique de olho no cronômetro — disse-lhe o pai, agitado, o lápis balançando completamente fora do círculo. — Isso deveria ser um teste, não uma.... festa.

Les manteve seus olhos na ponta oscilante do lápis, experimentando um sentimento de completa inutilidade, quando percebeu que estava apenas fingindo e que nada que fizesse poderia salvar a vida do pai.

Pelo menos, pensou, os testes não eram administrados pelos filhos e filhas que votaram a favor daquela lei. Pelo menos, ele não teria de carimbar em letras negras a palavra INADEQUADO sobre o teste de seu pai, decidindo, assim, sua sentença.

O lápis balançou novamente para fora da margem do círculo e voltou ao centro quando Tom deslocou seu braço ligeiramente sobre a mesa, um movimento que o desqualificaria imediatamente nessa questão.

— Esse cronômetro é lento demais! — Tom disse num súbito acesso de raiva.

Les prendeu a respiração e olhou para o cronômetro. Dois minutos e meio.

— Três minutos — disse ele, pressionando o botão.

Tom bateu o lápis irritado:

— Pronto — disse ele. — E um teste idiota esse — assumiu um tom aborrecido.

— Isso não prova nada. Absolutamente nada.

— Você quer responder algumas perguntas sobre dinheiro, pai?

— São as próximas questões do teste? — Tom perguntou, esticando o pescoço para conferir por si próprio, desconfiado.

— Sim — mentiu Les, sabendo que a visão de seu pai estava fraca demais, embora Tom sempre se recusasse a admitir que precisasse de óculos.

— Oh, espere um momento, há outra antes — ele acrescentou, julgando que seria mais fácil para o seu pai. — Eles vão lhe pedir para dizer as horas.

— Que pergunta estúpida — murmurou Tom. — Que diabos...

Estendeu a mão sobre a mesa, apanhou o relógio e o consultou.

— Dez e quinze — disse com ar de desdém.

Les deixou escapar antes que pudesse se conter:

— Mas são onze e quinze, pai.

Seu pai o olhou por um instante como se tivesse sido golpeado. Então, apanhou o relógio novamente e o olhou, torcendo os lábios, e Les teve a terrível premonição de que Tom ia insistir que eram realmente dez e quinze.

— Bem, foi o que eu quis dizer — disse Tom, abruptamente. — Eu me enganei. É claro que são onze e quinze, qualquer idiota saberia disso. Onze e quinze. Esse relógio não vale nada. Os números são muito próximos. Deve ser jogado fora. Agora...

Tom mexeu no bolso e puxou um relógio de ouro.

— Isto é um relógio! — disse ele, orgulhoso. — Vem marcando as horas perfeitamente há 60 anos! Isso sim é um relógio. Não isso aí.

Com desprezo, atirou longe o relógio de Les, que caiu com o mostrador para baixo, quebrando o vidro.

— Veja só — disse Tom rapidamente, para esconder o seu embaraço. Esse relógio não aguenta nada.

Ele evitava o olhar de Les concentrando-se em seu próprio relógio de ouro. Seus lábios se apertaram quando ele abriu a parte de trás do relógio e viu a fotografia de Mary.

Ela, na casa dos 30 anos, com os cabelos louros, encantadora.

Graças a Deus ela não tinha de se submeter a esses testes, pensou. Pelo menos foi poupada disso. Tom nunca pensou que pudesse considerar a morte acidental de Mary, aos 57 anos, uma sorte, mas isso foi antes dos testes.

Ele fechou o relógio e o pôs de lado.

— E só deixar o relógio comigo esta noite — disse ele, num tom mal-humorado. — Vou providenciar um... um vidro decente amanhã.

— Está tudo bem, pai. É só um relógio velho.

— Está tudo bem — disse Tom. — Está tudo bem, é só deixá-lo comigo. Vou providenciar um vidro... decente. Vou conseguir um para você que não quebre, um que não vá quebrar. E só deixá-lo comigo.

Então, Tom respondeu às questões relativas a dinheiro, do tipo: Quantos quartos têm numa nota de cinco dólares? e Se eu tirar 36 centavos de um dólar, quanto de troco você receberá?

Havia questões discursivas e Les ficou ali marcando tempo para o pai.

A casa estava aquecida e silenciosa.

O resultado parecia bastante normal e previsível. Os dois sentados à mesa e Terry costurando na sala de estar. Nisso consistia o horror.

A vida transcorria como de costume. Não se falava em morte. O governo enviava cartas e administrava os testes e aqueles que falhavam eram convocados a comparecer ao centro governamental para receber a injeção.

A lei funcionava, a taxa de mortalidade mantinha-se estável, o problema de superpopulação estava controlado: tudo oficialmente impessoal, sem gritos ou comoções. Ainda assim, eram entes queridos os que estavam sendo assassinados.

— Não se preocupe em ficar marcando o tempo — disse o pai. — Posso responder a essas questões sem que você fique consultando o tempo todo esse relógio.

— Pai, os examinadores vão consultar o relógio.

— Os examinadores são os examinadores — retrucou Tom. — Você não é um examinador.

— Pai, estou tentando ajudá-lo...

— Bem, então, ajude-me, ajude-me. Não fique aí sentado olhando para esse relógio.

— Esse teste é seu, pai, e não meu — começou Les, sentindo as faces queimarem de raiva.

— Se...

— Meu teste, sim, meu teste! — disse o pai de repente, furioso. — Vocês todos esperam por isso, não é? Esperam... que...

As palavras lhe faltaram novamente, pensamentos raivosos se atropelavam em sua mente.

— Você não precisa gritar, pai.

— Eu não estou gritando!

— Pai, os meninos estão dormindo! — Terry subitamente interveio.

— Não me importo se... — Tom interrompeu no meio a frase e recostou-se em sua cadeira, deixando o lápis cair de sua mão, sem perceber, e rolar sobre a toalha de mesa. Ficou ali sentado, tremendo, o peito magro subindo e descendo convulso e as mãos se torcendo descontroladamente sobre o seu colo.

— Você quer continuar, pai? — perguntou Les, contendo sua raiva e nervosismo.

— Eu não peço muito — Tom balbuciou. — Não peço muito da vida.

— Pai, podemos continuar?

O pai se retesou.

— Se você dispuser de tempo — disse ele, com um tom de orgulho, indignado. — Se você dispuser de tempo.

Les olhou o questionário, seus dedos apertando firme as folhas de papel grampeadas.

Questões psicológicas? Não, não podia fazê-las. Como você pode perguntar a um pai de 80 anos o que ele pensa sobre sexo? Um pai carrancudo, para quem o comentário mais inocente é "obsceno"?

— E então? — perguntou o pai, elevando a voz.

— Parece que não tem mais nada — disse Les. — Já estamos nisso quase quatro horas.

— E todas essas páginas que você pulou?

— A maioria delas é relativa à parte física...

Ele viu o pai apertar os lábios e sentiu medo de que Tom dissesse ai sobre isso de novo. Mas tudo o que ele disse foi:

— Que belo amigo.

— Pai, você...

Les não pôde continuar a frase. Era inútil discutir. Tom sabia perfeitamente que o Dr. Trask não poderia emitir outro atestado médico para ele evitar esse teste, como acontecera com os três anteriores.

Les sabia o quão assustado e ultrajado o velho homem se sentia porque teria de tirar as roupas e se expor aos médicos, que lhe fariam perguntas ofensivas, além de sondá-lo e auscultá-lo. Sabia como Tom tinha receio do fato de que, ao vestir novamente as roupas, estaria sendo observado secretamente e alguém marcaria numa tabela como ele se vestia sozinho. Sabia como seu pai estava assustado por saber que, quando fosse comer na cafeteria governamental, no intervalo de um dia inteiro de exames, estaria sendo observado novamente na expectativa de deixar cair um garfo ou uma colher, ou derrubar um copo de água, ou deixar respingar molho em sua camisa.

— Pedirão que você assine seu nome e escreva seu endereço — disse Les, desejando que o pai se esquecesse da parte física e sabendo como Tom se sentia orgulhoso de sua caligrafia.

Fingindo ainda estar irritado, o velho homem pegou o lápis e começou a escrever. Eu os enganarei a todos, pensou, enquanto o lápis se movia pela página com movimentos fortes e seguros.

"Sr. Thomas Parker", escreveu, "Brighton Street, 2.719, Blairtown, Nova York".

— E a data — disse Les.

O pai escreveu "17 de janeiro de 2003" e sentiu um calafrio. O teste estava marcado para o dia seguinte.

Estavam deitados lado a lado, ambos despertos. Mal haviam falado um com o outro, enquanto se despiam, quando Les havia se inclinado sobre ela para lhe dar um beijo de boanoite e ela havia murmurado algo que ele não havia conseguido escutar.

Agora, ele se virou para o lado dela com um suspiro profundo e a encarou. No escuro, ela abriu os olhos e o olhou.

— Está dormindo? — ela perguntou baixinho.

— Não.

Ele nada mais disse. Esperou que ela começasse.

Mas ela não começou e, após alguns instantes, ele disse:

— Bem, eu acho que é... o fim — concluiu debilmente porque não gostara da frase; soara ridiculamente melodramática.

Terry não respondeu de pronto. Então, como se pensasse alto, disse:

— Você acha que há alguma chance de...

Les se encolheu ao escutar tais palavras, porque sabia o que ela ia dizer.

— Não — disse ele. — Ele não tem chance alguma de passar.

Escutou-a engolir em seco. Não diga isso, pensou ele implorando. Não me fale que vem dizendo a mesma coisa há quinze anos. Sei disso. Disse porque achava que era verdade.

De repente, desejou que houvesse assinado anos antes o "Pedido de Remoção".

Precisavam se ver livres de Tom desesperadamente, pelo bem dos filhos e de si próprios, mas como verbalizar essa necessidade sem se sentir um assassino? Não se pode dizer: espero que o velho homem fracasse, espero que o matem. Embora qualquer outra coisa que se diga seja apenas um substituto hipócrita para aquelas palavras, porque é assim que você se sente exatamente.

Termos médicos, pensou ele — gráficos sobre o declínio de produção de alimentos e diminuição de condições de vida, a fome no mundo e o nível de deterioração da saúde —, usaram todos esses argumentos para fazerem com que a lei fosse aprovada. Bem, eram mentiras, mentiras óbvias e sem fundamento. A lei foi aprovada porque as pessoas desejavam ficar livres de problemas e viver suas próprias vidas.

— Les, e se ele passar? — Terry disse.

Ele sentiu suas mãos se apertarem contra o colchão.

— Les.

— Não sei, querida — respondeu ele.

A voz dela soou firme na escuridão. Era uma voz no limite da paciência!

— Você tem de saber — disse ela.

Ele revolveu a cabeça no travesseiro.

— Querida, não me pressione – ele implorou , – por favor.

— Les, se ele passar no teste, serão mais cinco anos. Mais cinco, Les. Já pensou o que isso significa?

— Querida, ele não tem condições de passar no teste.

— Mas... e se passar?

— Terry, ele errou três quartos das perguntas que lhe fiz hoje à noite, quase não escuta, sua vista é ruim, seu coração é fraco, tem artrite...

Les bateu o punho impotente na cama:

— Ele não passa sequer pelo teste físico — disse ele, odiando-se por dentro por assegurar à esposa que Tom estava condenado.

Se ao menos ele pudesse esquecer o passado e levar em conta apenas o que o pai era agora: um velho inútil com a mente cansada, que estava arruinando suas vidas. Mas era difícil esquecer como havia amado e respeitado seu pai, as caminhadas pelo campo, as pescarias, as longas conversas à noite e todas as coisas que seu pai e ele haviam compartilhado.

Por tudo isso, nunca tivera força para assinar o "Pedido de Remoção".

Era um simples formulário a ser preenchido. Muito mais simples do que esperar pelos testes a cada cinco anos. Mas isso significava descartar a vida do próprio pai com uma simples assinatura, requisitando ao governo dispor dele como se fosse lixo a ser removido.

No entanto, agora seu pai tinha 80 anos e, apesar de toda a sua criação moral a despeito de seus princípios cristãos de toda uma vida, Terry e ele estavam terrivelmente receosos de que o velho Tom pudesse passar no teste, e viver mais cinco anos com eles... mais cinco anos zanzando pela casa, contradizendo as ordens dadas aos garotos, quebrando coisas, querendo ajudar, mas só atrapalhando, e transformando a vida numa agonia enervante.

— É melhor você dormir — disse Terry.

Ele tentou, mas não conseguiu. Ficou deitado com os olhos fixos no teto escuro, tentando descobrir uma solução, mas em vão.

O despertador tocou às seis da manhã. Les não precisava se levantar até as oito, mas desejava ver o pai sair. Saiu da cama e se vestiu silenciosamente para não despertar Terry.

Ela acordou mesmo assim e olhou para ele do seu travesseiro. Após um instante, ergueu-se sobre o cotovelo e olhou-o sonolenta.

— Vou levantar e lhe preparar um café da manhã.

— Não há necessidade — disse Les. — Fique na cama.

— Você não quer que eu me levante?

— Não se incomode, querida — disse ele. — Quero que você descanse.

Ela voltou a se deitar e virou-se para que Les não visse seu rosto. Não sabia o motivo, mas começara a chorar silenciosamente, se era por Les não querer que ela visse seu pai ou por causa do teste. Mas ela não conseguia parar. Tudo que podia fazer era se segurar até ouvir a porta do quarto se fechar.

Então, seus ombros estremeceram e um soluço transpôs a barreira que ela havia imposto a si mesma.

A porta do quarto de seu pai estava aberta e Les entrou. Deu uma espiada lá dentro e viu Tom sentado na cama inclinado, amarrando os sapatos escuros. Observou os dedos enrugados e trêmulos lidarem com os cadarços.

— Tudo bem, pai? — perguntou Les.

O pai levantou os olhos, surpreso:

— O que está fazendo acordado a esta hora? — perguntou.

— Pensei em tomar o café da manhã com você — Les disse a ele.

Por um instante, olharam-se em silêncio. Então, o pai inclinou-se sobre os sapatos novamente.

— Não há necessidade — ouviu a voz do velho homem lhe dizer.

— Bem, de qualquer maneira, vou preparar — disse ele e virou-se para que seu pai não pudesse contestá-lo.

— Oh... Leslie.

Les se virou.

— Espero que você não tenha se esquecido de deixar o relógio — disse seu pai. — Pretendo levá-lo à joalheria hoje e mandar colocar um... vidro decente nele, um que não quebre.

— Pai, é apenas um relógio velho — disse Les. — Não vale a pena.

O pai assentiu lentamente, gesticulando com a mão como se estivesse encerrando a discussão:

— Mesmo assim — ele afirmou, calmamente — pretendo...

— Está bem, pai. Está bem. Vou deixá-lo sobre a mesa da cozinha.

O pai parou de falar e olhou para ele por um instante, com o rosto sem expressão.

Então, como por impulso e não por um desejo adiado, ele se inclinou para os sapatos novamente.

Les ficou parado um instante olhando para os cabelos grisalhos do pai, seus dedos magros e trémulos. Então, virou-se e foi embora.

O relógio ainda estava sobre a mesa de jantar. Les o apanhou e o levou para a mesa da cozinha. O velho homem deve ter ficado a noite toda se forçando a lembrar do relógio, pensou ele. De outro modo, não teria conseguido se lembrar.

Encheu a cafeteira de água e pôs no fogo duas porções de bacon e ovos. Então, encheu dois copos com suco de laranja e sentou-se à mesa.

Cerca de quinze minutos mais tarde, seu pai desceu trajando seu terno azul-marinho, os sapatos cuidadosamente polidos, as unhas impecáveis, o cabelo gomalinado e penteado. Parecia bem asseado e bastante velho, enquanto caminhava até a cafeteira.

— Sente-se, pai — disse Les. — Deixe que eu sirvo o senhor.

— Não sou imprestável — disse o pai. — Fique onde está.

Les tentou sorrir.

— Estou preparando bacon e ovos para nós — disse ele.

— Não estou com fome — respondeu o pai.

— E melhor você tomar um bom café da manhã, pai.

— Nunca fui de comer muito no café da manhã — disse o pai, ereto, ainda parado na frente do fogão. — Acho que não faz bem para o estômago.

Les fechou os olhos um instante, por seu rosto passou uma expressão de desamparo e desespero. Por que me dei ao trabalho de sair da cama?, ele se perguntou, desanimado. Tudo que fazemos é discutir. Não. Endureceu. Não, não vou lhe dar esse gostinho.

— Dormiu bem, pai? — perguntou.

— Claro que dormi bem — respondeu o pai. — Sempre durmo bem.

— Muito bem.

— Você acha que eu não dormiria bem por causa de um... — interrompeu-se de repente e se virou com ar acusador para Les. — Onde está o relógio ?— quis saber.

Les suspirou cansado e lhe entregou o relógio. Seu pai deslocou-se desajeitadamente pelo piso de linóleo, tirou-o das mãos dele e o examinou um instante, com os velhos lábios franzidos.

— Péssima qualidade — disse ele. — Péssima — meteu cuidadosamente no bolso lateral.

— Vou conseguir um vidro decente — murmurou. — Um que não quebre.

Les concordou.

— Será ótimo, pai.

Então, o café ficou pronto e Tom encheu as duas xícaras. Les se levantou e desligou o fogão. Já não tinha vontade de comer bacon e ovos. Sentou-se diante da face severa de seu pai e sentiu o café quente descer queimando sua garganta. Tinha um gosto horrível, mas sabia que nada no mundo teria um bom sabor para ele naquela manhã.

— A que horas você tem de estar lá, pai? — perguntou para quebrar o silêncio.

— Às nove horas — disse Tom.

— Tem certeza de que não quer que eu o leve de carro?

— Não precisa. Não precisa — disse o pai como se estivesse falando pacientemente com uma criança insistente e irritante. — O metrô é ótimo. Vou chegar lá mais do que a tempo.

— Está certo, pai — disse Les, e ficou ali sentado olhando para o seu café.

Devia haver algo que pudesse dizer, mas não conseguiu atinar nada.

O silêncio pairou sobre eles por longos minutos, enquanto Tom bebia o seu café preto em goles vagarosos e metódicos.

Les molhou os lábios nervosamente e, percebendo que tremiam, escondeu-os por trás da xícara. Conversa, conversa, pensou ele, sobre idas de carro e metro, e horário do teste, ambos sabiam que Tom poderia ser condenado à morte naquele mesmo dia.

Lamentou-se por ter se levantado. Teria sido melhor acordar e descobrir que seu pai já havia saído. Desejou que tivesse sido assim para sempre.

Desejou que pudesse acordar certa manhã e encontrar o quarto de seu pai vazio; descobrir que os dois ternos haviam desaparecido, bem como os sapatos escuros, as roupas de trabalho, os lenços, as meias, os suspensórios, os apetrechos de barbear... todas essas evidências silenciosas de uma vida.

Mas não seria assim. Depois que Tom fracassasse no teste, levaria várias semanas antes que a carta com a convocação derradeira chegasse e, após isso, outra semana, mais ou menos, para a execução propriamente dita.

Seria um processo terrivelmente longo de preparativos, de encaixotar as coisas dele e escolher o que conservar e o que jogar fora, uma série infindável de refeições juntos, de conversas, o último jantar com ele, a longa viagem até o centro governamental, a subida silenciosa pelo elevador onde só se ouviria o ruído do mecanismo em ação...

Meu Deus!

Pôs-se a tremer, incapaz de se conter e, por um momento, temeu cair em prantos.

Então, olhou para cima, chocado, quando seu pai se levantou.

— Devo ir agora — disse Tom.

Os olhos de Les buscaram o relógio na parede.

— Mas ainda são quinze para as sete — observou ele, tenso. — Não demora todo esse tempo para...

— Gosto de fazer as coisas sem pressa — disse o pai, decidido. — Nunca gostei de chegar atrasado aos compromissos.

— Mas, meu Deus, pai, só leva uma hora para chegar à cidade — disse ele, sentindo um terrível aperto no estômago.

Seu pai balançou a cabeça e Les sabia que não tinha ouvido.

— É cedo, pai — disse mais alto, a voz ligeiramente trêmula.

— Não faz mal — disse o pai.

— Mas você não comeu nada.

— Nunca como muito no café da manhã — Tom começou. — Não me faz, bem...

Les não ouviu o resto da frase, as palavras sobre os hábitos de toda uma vida, sua dificuldade em digerir e tudo o que seu pai sempre repetia.

Sentiu que era castigado por ondas implacáveis de terror, e quis saltar e envolver o velho nos braços, dizendo-lhe para não se preocupar com o exame porque não importava, porque o amavam e cuidariam dele.

Mas não foi capaz. Ficou ali sentado, paralisado pelo medo, olhando para o pai. Sequer conseguiu falar quando Tom se virou na porta da cozinha e disse, com a voz desprovida de emoção, porque lhe custava toda a energia restante para fazê-lo:

— Vejo você à noite, Leslie.

A porta vaivém se fechou e a brisa que atingiu o rosto de Les lhe congelou a alma.

De repente, levantou-se com um gemido de terror e correu pelo piso de linóleo. Ao empurrar a porta, viu que o pai estava quase chegando à porta da frente.

— Pai!

Tom parou e olhou para trás, surpreso, enquanto Les atravessava a sala de estar contando mentalmente os passos: um, dois, três, quatro, cinco.

Parou diante do pai e esforçou-se por sorrir.

— Boa sorte, pai — disse ele. — Eu... o vejo à noite.

Esteve prestes a dizer: Vou torcer por você, mas não conseguiu.

Seu pai assentiu com a cabeça uma vez, apenas um aceno rápido, como um cavalheiro reconhecendo outro.

— Obrigado — disse ele, e se virou.

Quando a porta se fechou, era como se, de repente, ela houvesse se transformado em um muro impenetrável que seu pai nunca mais poderia atravessar.

Les foi até a janela e acompanhou o velho homem com os olhos, enquanto atravessava o jardim lentamente até chegar à calçada e virar à esquerda. Viu-o seguir pela rua, endireitar o corpo, colocar os ombros para trás e caminhar ereto e vigorosamente na névoa da manhã.

A princípio, Les achou que estava chovendo, mas percebeu que a umidade que lhe atrapalhava a vista não era da vidraça.

Não teve coragem de ir trabalhar. Telefonou avisando que estava doente e ficou em casa. Terry acordou os filhos para a escola e, depois que terminaram de tomar o café da manhã, Les a ajudou a limpar os pratos e colocá-los na máquina. Terry não se pronunciou sobre o fato de ele não ter ido trabalhar.

Comportou-se como se fosse normal ele ficar em casa em um dia de semana.

Les passou a manhã e a tarde na garagem, começando sete projetos diferentes e logo perdendo o interesse por todos.

Por volta das cinco da tarde, foi até a cozinha e abriu uma lata de cerveja enquanto Terry preparava o jantar. Nada disse. Ficou andando de um lado para o outro na sala de estar, parando ocasionalmente para olhar o céu nublado pela janela e, então, começar de novo.

— Gostaria de saber onde ele está que ainda não voltou — falou, finalmente, voltando para a cozinha.

— Ele vai voltar — disse a esposa, e Les retesou-se por um instante, julgando ter percebido um tom de desgosto na voz de Terry. Então, relaxou, ao perceber que fora apenas sua imaginação.

Quando se vestia, após tomar um banho, eram cinco e quarenta da tarde. Os meninos já haviam voltado para casa depois de brincar lá fora, e estavam sentados à mesa para jantar. Les reparou que Terry havia colocado a mesa para o seu pai e se perguntou se fizera aquilo apenas em consideração ao marido.

Não conseguiu comer nada. Continuava a cortar a carne em partes cada vez menores e a passar manteiga na batata assada, sem provar nenhuma das duas.

— O quê? — perguntou quando percebeu que Jim falara com ele.

— Papai, se o vovô não passar no exame, ele terá ainda um mês, certo?

— Les sentiu os músculos do estômago se contraírem, enquanto olhava fixamente para o filho mais velho. Terá ainda um mês, certo? – o final da pergunta de Jim continuava ecoando em seu cérebro.

— Do que você está falando? — disse Les.

— No meu livro de educação cívica, está escrito que dão às pessoas velhas que não passaram no exame um mês de vida. E verdade, não é?

— Não, não é verdade — interveio Tommy. — A avó de Harry Senker recebeu a carta após duas semanas apenas.

— E como você sabe? — perguntou Jim ao irmão de nove anos. — Você viu?

— Basta — disse Les.

— Não precisava ver — contestou Tommy. — Harry me disse que...

— Basta!

Na mesma hora, os dois filhos olharam para o pai, brancos como papel.

— Não falemos mais sobre isso — disse ele.

— Mas o que...

— Jimmy — disse Terry, com severidade.

Jimmy olhou para a mãe e, depois de um momento, voltou a se concentrar em seu prato, e todos comeram em silêncio.

A morte do avô não significava nada para eles, pensou amargamente Les... nada.

Engoliu em seco e tentou relaxar a tensão do corpo. Bem, por que deveria significar alguma coisa?, perguntou para si mesmo. Para eles, ainda não chegara o momento de se preocupar. Por que forçá-los a fazer isso agora? Em breve, chegaria a hora.

Quando a porta da frente abriu e fechou às seis e dez, Les se levantou tão abruptamente, que derrubou um copo vazio.

— Les, não! — Terry disse, de repente, e ele soube imediatamente que tinha razão. Seu pai não gostaria de vê-lo sair correndo da cozinha e enchê-lo de perguntas.

Sentou-se e olhou para a comida que mal tocara, com o coração acelerado.

Ao erguer o garfo com os dedos rígidos, ouviu o velho atravessar o tapete da sala e subir as escadas. Olhou para Terry, que se limitou a engolir.

Não conseguia comer. Sentou-se ofegante, remexendo a comida.

Ouviu a porta do quarto do pai se fechar lá em cima.

Quando Terry colocou a torta na mesa, Les balbuciou uma desculpa e se levantou.

No começo da escada, escutou a porta da cozinha se abrir. Ouviu-a chamar seu nome, com urgência.

Parou e permaneceu em silêncio enquanto a mulher se aproximava.

— Não é melhor deixá-lo sozinho? — perguntou ela.

— Mas, querida, eu...

— Les, se ele tivesse sido aprovado no exame, teria entrado na cozinha para nos dizer.

— Querida, não é possível saber se...

— Ele saberia se houvesse passado, você sabe disso. Ele nos disse isso das duas últimas vezes. Se tivesse passado, já teria...

Não terminou a frase. Estremeceu com a maneira com que Les a olhou. No silêncio opressivo, tudo o que ouviu foi o estrondo repentino da chuva, que começou a bater nas vidraças.

Encararam-se um longo tempo. Então, Les disse:

— Vou subir.

— Les — murmurou Terry.

— Não direi coisa alguma que possa perturbá-lo — disse. — Eu vou...

Ficaram se encarando um tempo ainda maior. Então, Les se virou e subiu a escada ruidosamente. Terry o observou com ar triste e desanimado.

Les parou por um minuto diante da porta fechada, tentando criar coragem. Não quero incomodá-lo, disse a si mesmo, Não quero...

Bateu na porta suavemente, perguntando-se, no mesmo segundo, se estaria cometendo um engano.

Talvez devesse deixá-lo sozinho, pensou deprimido.

Lá de dentro, percebeu um movimento vindo da cama e, em seguida, o som dos pés de seu pai no chão.

— Quem é? — ouviu Tom perguntar.

Les engasgou.

— Sou eu, pai — disse ele.

— O que você quer?

— Posso vê-lo?

Silêncio do outro lado.

— Bem... — ouviu e, em seguida, a voz se calou.

Les o escutou se levantando novamente, colocando os pés no chão. Ouviu o som de uma folha de papel sendo amassada e uma gaveta que se fechava com cuidado.

Afinal, a porta se abriu.

Tom vestira o velho roupão vermelho por cima de suas roupas, tirara os sapatos e calçara os chinelos.

— Posso entrar, pai? — Les perguntou baixinho.

O pai hesitou um instante e, então, disse "entre", mas não foi um convite. Era mais como se dissesse: "Esta é a sua casa, não posso impedi-lo de entrar neste quarto".

Les estava prestes a lhe dizer que não queria incomodá-lo, mas não conseguiu. Foi até o centro do aposento e esperou.

— Sente-se — disse o pai, e Les se sentou na cadeira de encosto reto na qual o pai pendurava as roupas durante a noite. Tom esperou até que Les estivesse acomodado e, depois, afundou-se na cama com um grunhido.

Por um longo tempo, olharam um para o outro sem dizerem nada, como dois estranhos, cada qual esperando que o outro começasse a falar. Como foi o teste? A questão continuava girando na mente de Les. Como foi o teste? Como foi o teste? Não podia formulá-la. Como foi...

— Suponho que você queira saber o que... aconteceu — disse, então, o pai, visivelmente tentando se controlar.

— Sim — disse Les. — Eu... — tomou fôlego. — Sim — repetiu e esperou.

O velho Tom baixou os olhos para o chão, por um momento. Então, levantou-se bruscamente e olhou para o filho com um ar de desafio.

– Não fui até lá — disse ele.

Les sentiu como se, de repente, toda sua energia tivesse sido sugada pelo chão. Ficou sentado ali, imóvel, olhando fixamente para o pai.

— Não tinha intenção alguma de ir lá — apressou-se em acrescentar Tom. — Nenhuma intenção de me submeter a todo esse absurdo. Testes físicos, testes m-mentais, empilhar c-cubos de madeira em um tabuleiro e... sabe Deus mais o quê! Não tinha a menor intenção de ir.

Parou e olhou para o filho com fúria nos olhos, como se a desafiá-lo a dizer que estava errado. Mas Les não conseguia dizer coisa alguma. Passou-se um longo tempo. Les engoliu em seco e conseguiu organizar as palavras:

— O que você vai... fazer?

— Não se preocupe, não se preocupe — disse Tom, quase grato pela pergunta. — Não se preocupe com o seu pai. Seu pai sabe se cuidar.

E, de repente, Les ouviu novamente a gaveta da escrivaninha se fechar e o farfalhar de um saco de papel. Ele quase olhou para o móvel, para ver se o saco ainda estava lá.

Entretanto, conseguiu controlar o impulso.

— B-bem — balbuciou, sem se dar conta de como a expressão em seu rosto deixava transparecer quão assustado e desorientado estava.

— Agora, não se preocupe com isso — disse o pai, baixinho, quase gentilmente. — Não é problema seu. Não é mesmo.

Mas, Les se ouviu gritar por dentro, mas nada disse. Algo em seu pai o deteve; uma espécie de orgulho, de energia, uma dignidade firme com a qual sabia que não devia interferir.

— Gostaria de descansar agora — ouviu Tom dizer.

Teve a sensação de ter acabado de receber um soco no estômago. Gostaria de descansar agora... as palavras ecoaram pelo labirinto do seu cérebro, enquanto se levantava. Descansar agora, descansar agora...

Viu-se caminhando para a porta e, lá, virou-se e olhou para o pai.

Adeus. A palavra doeu nele.

Então, Tom sorriu e disse:

— Boa noite, Leslie.

— Pai.

Sentiu a mão do velho homem na sua, mais forte que a sua, mais firme, acalmando-o, tranquilizando-o. Sentiu a mão esquerda do pai apertar seu ombro.

— Boa noite, filho — disse o pai.

Quando ainda estavam próximos, Les viu, por cima do ombro do pai, o saco da farmácia amassado no canto do quarto, como se houvesse sido jogado lá para que ninguém o visse.

Em seguida, estava no corredor, em pânico, incapaz de pronunciar uma palavra, ouvindo o clique da porta se fechando e percebendo que, mesmo que seu pai não houvesse trancado a porta, não poderia entrar em seu quarto.

Permaneceu um longo tempo olhando para a porta fechada, tremendo incontrolavelmente.

Em seguida, virou-se e foi embora.

Terry estava à sua espera ao pé da escada, rosto esgotado. Questionou-o com os olhos, enquanto Les descia em sua direção.

— Ele... não foi — disse apenas isso.

Terry deixou escapar um débil som de surpresa.

— Mas...

— Ele foi à farmácia — acrescentou Les. — Eu... vi o saco num canto do quarto. Ele o jogou ali para que eu não o visse, mas... eu vi.

Por um instante, parecia que ela estava prestes a subir as escadas, mas foi apenas um reflexo momentâneo.

— Deve ter mostrado ao farmacêutico a carta de convocação para o exame — disse Les.

— E, provavelmente, o... farmacêutico lhe deu... pílulas. Como todos fazem.

Ficaram em silêncio na sala de estar, enquanto a chuva tamborilava nas janelas.

— O que devemos fazer? — perguntou Terry, de forma quase inaudível.

— Nada — murmurou ele. Sua garganta movia-se convulsivamente, a respiração era difícil. – Nada.

Depois, ele voltou para a cozinha atordoado e sentiu o braço de sua esposa o envolvendo bem apertado, como se para transmitir o seu amor através do toque, pois não conseguiria falar em amor.

Ficaram sentados na cozinha. Depois que Terry colocou as crianças na cama, voltou e ficaram ali tomando café e falando num tom de voz baixo e sem ânimo.

Por volta da meia-noite, deixaram a cozinha e, pouco antes de subirem, Les parou ao lado da mesa da sala de jantar e lá encontrou o seu relógio, com um vidro reluzente, novinho em folha. Sequer conseguiu tocá-lo.

Subiram as escadas, passando pelo quarto de Tom. Não ouviram som algum.

Despiram-se e foram para a cama juntos, Terry ajustou o despertador como fazia todas as noites. Após algumas horas, conseguiram adormecer.

E, durante toda a noite, houve silêncio no quarto do velho. E no dia seguinte.


"O Incrível Homem que Encolheu: e Outras Histórias" - Richard Matheson - Osasco, SP - Novo Século Editora, 2010.

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