terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Noite na Taverna

I - Uma Noite do Século

Bebamos! nem um canto de saudade!
Morrem na embriaguez da vida as dores!
Que importam sonhos, ilusões desfeitas?
Fenecem como as flores!

José Bonifácio

— Silêncio, moços! acabai com essas cantilenas horríveis! Não vedes que as mulheres dormem ébrias, macilentas como defuntos? Não sentis que o sono da embriaguez pesa negro naquelas pálpebras onde a beleza sigilou os olhares da volúpia?

— Cala-te, Johann! enquanto as mulheres dormem e Arnold — o louro, cambaleia e adormece murmurando as canções de orgia de Tieck, que música mais bela que o alarido da saturnal? Quando as nuvens correm negras no céu como um bando de corvos errantes, e a lua desmaia como a luz de uma lâmpada sobre a alvura de uma beleza que dorme, que melhor noite que a passada ao reflexo das taças?

— És um louco, Bertram! não é a lua que lá vai macilenta: e o relâmpago que passa e ri de escárnio as agonias do povo que morre... aos soluços que seguem as mortalhas do cólera!

— O cólera! e que importa? Não há por ora vida bastante nas veias do homem? não borbulha a febre ainda as ondas do vinho? não reluz em todo o seu fogo a lâmpada da vida na lanterna do crânio?

— Vinho! vinho! Não vês que as taças estão vazias bebemos o vácuo, como um sonâmbulo?

— É o Fichtismo na embriaguez! Espiritualista, bebe a imaterialidade da embriaguez!

— Oh! vazio! meu copo esta vazio! Olá taverneira, não vês que as garrafas estão esgotadas? Não sabes, desgraçada, que os lábios da garrafa são como os da mulher: só valem beijos enquanto o fogo do vinho ou o fogo do amor os borrifa de lava?

— O vinho acabou-se nos copos, Bertram, mas o fumo ondula ainda nos cachimbos! Após os vapores do vinho os vapores da fumaça! Senhores, em nome de todas as nossas reminiscências, de todos os nossos sonhos que mentiram, de todas as nossas esperanças que desbotaram, uma última saúde! A taverneira ai nos trouxe mais vinho: uma saúde! O fumo e a imagem do idealismo, e o transunto de tudo quanto ha mais vaporoso naquele espiritualismo que nos fala da imortalidade da alma! e pois, ao fumo das Antilhas, a imortalidade da alma!

— Bravo! bravo!

Um urrah! tríplice respondeu ao moço meio ébrio.

Um conviva se ergueu entre a vozeria: contrastavam-lhe com as faces de moço as rugas da fronte e a rouxidão dos lábios convulsos. Por entre os cabelos prateava-se-lhe o reflexo das luzes do festim. Falou:

— Calai-vos, malditos! a imortalidade da alma!? pobres doidos! e porque a alma é bela, por que não concebeis que esse ideal posse tornar-se em lodo e podridão, como as faces belas da virgem morta, não podeis crer que ele morra? Doidos! nunca velada levastes porventura uma noite a cabeceira de um cadáver? E então não duvidastes que ele não era morto, que aquele peito e aquela fronte iam palpitar de novo, aquelas pálpebras iam abrir-se, que era apenas o ópio do sono que emudecia aquele homem? Imortalidade da alma! e por que também não sonhar a das flores, a das brisas, a dos perfumes? Oh! não mil vezes! a alma não é como a lua, sempre moça, nua e bela em sue virgindade eterna! a vida não e mais que a reunião ao acaso das moléculas atraídas: o que era um corpo de mulher vai porventura transformar-se num cipreste ou numa nuvem de miasmas; o que era um corpo do verme vai alvejar-se no cálice da flor ou na fronte da criança mais loira e bela. Como Schiller o disse, o átomo da inteligência de Platão foi talvez para o coração de um ser impuro. Por isso eu vo-lo direi: se entendeis a imortalidade pela metempsicose, bem! talvez eu a creia um pouco; pelo platonismo, não!

— Solfieri! és um insensato! o materialismo é árido como o deserto, é escuro como um túmulo! A nós frontes queimadas pelo mormaço do sol da vida, a nós sobre cuja cabeça a velhice regelou os cabelos, essas crenças frias? A nós os sonhos do espiritualismo.

— Archibald! deveras, que é um sonho tudo isso! No outro tempo o sonho da minha cabeceira era o espírito puro ajoelhado no seu manto argênteo, num oceano de aromas e luzes! Ilusões! a realidade é a febre do libertino, a taça na mão, a lascívia nos lábios, e a mulher seminua, trêmula e palpitante sobre os joelhos.

— Blasfêmia! e não crês em mais nada? teu ceticismo derribou todas as estátuas do teu templo, mesmo a de Deus?

— Deus! crer em Deus!?... sim! como o grito íntimo o revela nas horas frias do medo, nas horas em que se tirita de susto e que a morte parece roçar úmida por nós! Na jangada do náufrago, no cadafalso, no deserto, sempre banhado do suor frio do terror e que vem a crença em Deus! Crer nele como a utopia do bem absoluto, o sol da luz e do amor, muito bem! Mas, se entendeis por ele os ídolos que os homens ergueram banhados de sangue e o fanatismo beija em sua inanimação de mármore de há cinco mil anos... não creio nele!

— E os livros santos?

— Miséria! quando me vierdes falar em poesia eu vos direi: aí há folhas inspiradas pela natureza ardente daquela terra como nem Homero as sonhou, como a humanidade inteira ajoelhada sobre os túmulos do passado nunca mais lembrará! Mas, quando me falarem em verdades religiosas, em visões santas, nos desvarios daquele povo estúpido, eu vos direi: miséria! miséria! três vezes miséria! Tudo aquilo é falso: mentiram como as miragens do deserto!

— Estas ébrio, Johann! O ateísmo é a insânia como o idealismo místico de Schelling, o panteísmo de Spinoza — o judeu, e o esterismo crente de Malebranche nos seus sonhos da visão em Deus. A verdadeira filosofia e o epicurismo. Hume bem o disse: o fim do homem é o prazer. Daí vede que é o elemento sensível quem domina. E pois ergamo-nos, nos que amanhecemos nas noites desbotadas de estudo insano, e vimos que a ciência é falsa e esquiva, que ela mente e embriaga como um beijo de mulher.

— Bem! muito bem! é um toast de respeito!

— Quero que todos se levantem, e com a cabeça descoberta digam-no: Ao Deus Pã da natureza, aquele que a antigüidade chamou Baco o filho das coxas de um deus e do amor de uma mulher, e que nos chamamos melhor pelo seu nome — o vinho!...

— Ao vinho! ao vinho!

Os copos caíram vazios na mesa.

— Agora ouvi-me, senhores! entre uma saúde e uma baforada de fumaça, quando as cabeças queimam e os cotovelos se estendem na toalha molhada de vinho, como os braços do carniceiro no cepo gotejante, o que nos cabe é uma historia sanguinolenta, um daqueles contos fantásticos como Hoffmann os delirava ao clarão dourado do Johannisberg!

— Uma história medonha, não, Archibald? falou um moço pálido que a esse reclamo erguera a cabeça amarelenta. Pois bem, dir-vos-ei uma historia. Mas quanto a essa, podeis tremer a gosto, podeis suar a frio da fronte grossas bagas de terror. Não é um conto, é uma lembrança do passado.

— Solfieri! Solfieri! aí vens com teus sonhos!

— Conta!

Solfieri falou: os mais fizeram silêncio.
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Álvares de Azevedo (Manuel Antônio Álvares de Azevedo), poeta, contista e ensaísta, nasceu em São Paulo em 12 de setembro de 1831, e faleceu o Rio de Janeiro, RJ, em 25 de abril de 1852. Patrono da Cadeira n. 2 da Academia Brasileira de Letras, por escolha de Coelho Neto.

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