sábado, 16 de junho de 2018

A Morte Planejada


MARTINS TINHA UMA BOA esposa. Vivia com Maria há dez anos. Eles não tinham filhos. Martins era pedreiro. Construía casas. Só para pessoas ricas. Ele não aceitava trabalhar para pobres ou remediados.

Martins tinha uma amante. Estava com ela há dois anos. Seu nome era Márcia. Ela era muito ciumenta. Maldizia a hora em que vira Martins e se apaixonara por ele. Márcia não aceitava ser a outra. A amante. Ela queria ser a esposa de Martins.

- Amor, quando você pedirá o divórcio de sua esposa?

- Ainda não sei. Não é fácil decidir.

- Você sempre me responde assim. Estou cansada de ser a outra e de dividi-lo com outra mulher. Quero você só para mim. Quero ser a sua esposa. Não quer ser abandonada quando ficar velha e não ter ninguém por mim.

- Nunca lhe escondi nada. Sempre lhe disse que seria difícil separar-me de Maria enquanto minha mãe fosse viva.

- Sei. Mas sua mãe morreu já faz um ano.

- Você precisa ter paciência.

- Mais ainda.

- Não é fácil.

- Não seria fácil se vocês tivessem filhos. Ela é seca. Não sei o que você vê naquela mulher.

- Ela é sua melhor amiga. Como você pode falar dela assim.

- Por isso mesmo. Eu a conheço não é de hoje.

- Sei...

- Quando ela me conta o que vocês fazem na cama tenho vontade de esganá-la. Seguro-me tanto para não pegar o pescoço dela e matá-la como se fosse uma galinha.

- Nem pense nisso. Evite entrar nessas conversas. Você é muito melhor do que ela.

- Sei. Mas não sei até quando vou suportar essa situação. Sou muito ciumenta. Não sei o que eu tinha na cabeça quando me envolvi com você.

- Eu sei.

-Engraçadinho. Estou falando sério.

- Preciso ir. Ela está me esperando. Nós vamos ao aniversário do Jaime. Você vai também?

- Claro! Você acha que eu vou perder um forró desses? Vou dançar a noite toda... com você.

- Não exagere. Você sabe que ela está desconfiada

- Está certo.

Márcia olha para Maria com desdém.

- Sua esposa é mesmo uma grande idiota.

- Sua amiga é idiota?

- Não sou amiga dela.

- Mas finge ser. Ela é sua amiga. Conta-lhe todos os segredos. Você é apenas a ouvinte e se aproveita disso.

- Que proveito tenho eu? Sou obrigada a dividi-lo com ela. Uma pata sonsa.

- Um dia serei só seu.

- Quando?

- Não sei. Talvez se ela...

- Complete.

- Não! Jamais faria isso.

- Eu faria.

- Nem se atreva.

- Veja o meu desespero. Sou capaz de matar só para ter você só para mim.

- Você é louca!? Não fale assim nem brincando.

- Não estou brincando. É sério.

- Vamos sentar e beber cerveja. Estou cansado.

- Eu também estou. Mas é da nossa situação.

- Márcia, como vocês dois dançam bem. Sobre o que vocês tanto conversavam? Estavam tão sérios.

- Nada demais, amor.

- É. Nada demais.

A festa acabou e todos voltaram para casa. Márcia morrendo de ciúmes, pois tinha certeza que as danças com ela haviam acendido o desejo de Martins e ele iria matar seu desejo com a pata da Maria. E ela ficaria em casa sozinha deitada na cama chupando dedo e imaginando os dois na cama, morrendo de desejo. Precisava acabar com essa situação de qualquer jeito. Decidiu apelar para uma conhecida que poderia ensinar-lhe uma forma de se livrar de Maria.

- Sim. Eu sei o que fazer para que o seu amado seja só seu. Eu já passei por isso. E já fiz muito disso. Não tem erro. Você quer isso mesmo?

- É o que eu mais quero na vida. – respondeu Márcia.

- Muito bem. Preste atenção. Você deve pegar um sapo e deixá-lo debaixo da sua cama. Você tem que fazer amor com o seu homem nos sete dias seguintes, sem tirar o sapo debaixo da cama. Numa sexta-feira, você deve pegar o resto de comida, que sobrou no prato da sua rival, e colocar dentro da boca do sapo. Costura a boca dele e enterre o sapo no cemitério, numa cova recém aberta. Logo você verá o resultado. Ninguém escapa.

Márcia seguiu as orientações. Numa quinta-feira:

- Querido!

- Diga, Márcia.

- Quero lhe pedir um favor.

- Peça.

- Maria é boa cozinheira?

- Mais ou menos. Você é melhor.

- Sei. Eu gostaria de experimentar a comida dela.

- Você já comeu tantas vezes em nossa casa. Você já conhece.

- Eu sei. Mas eu sempre ajudo. Eu quero uma comida sem minha ajuda e tem que ser uma que ela deixou no prato. Não quis comer mais.

- Por que?

- Porque sim. Você pode satisfazer essa vontade do seu amorzinho?

- Posso. Amanhã eu trarei para você.

- Não Esqueça. É muito importante para mim.

- Certo. Não esquecerei.

No dia seguinte, Martins chegou. Entrou. Márcia estava tomando banho.

- É você, amor?

- Sim, querida.

- Você trouxe o que eu lhe pedi ontem?

Martins havia esquecido completamente. Olhou para o forno do fogão e viu um prato com comida.

- Trouxe. Você acha que eu esqueceria um pedido seu?

- Que bom, amor. Hoje eu vou acabar com você na cama para lhe mostrar todo o meu amor.

- Ótimo.

Martins foi até o armário e pegou um prato que sabia era de Maria. Abriu o forno do fogão e colocou metade da comida, que estava no prato dentro do forno, no prato de Maria. Pegou papel alumínio e cobriu o prato. Quando Márcia saiu do banheiro, foram para o quarto. Ela cumpriu o que havia prometido.

No dia seguinte, sexta-feira, Márcia levantou bem cedo. Pegou o sapo que estava preso sob a cama e o matou. Abriu a boca do sapo e colocou toda a comida, que Martins havia trazido da casa de Maria, dentro da boca do sapo. Depois costurou a boca do sapo. Colocou-o dentro de um saco e o saco dentro de uma sacola. Saiu. Pegou um ônibus até o cemitério da Lapa. Entrou e andou pelas alamedas procurando uma cova recém aberta. Não demorou muito para achar. Olhou para os lados. Não viu ninguém. Afastou a coroa de flores e fez um buraco com as mãos enluvadas. Retirou o sapo do saco e o enterrou. Satisfeita e feliz saiu do cemitério. Pegou o ônibus e voltou para casa.

No outro dia visitou Maria, que a recebeu muito feliz. Almoçaram juntas. Márcia não notou nada de diferente em Maria. Talvez ainda fosse cedo. Esperaria.

Dois meses. Três meses e nada. Márcia já estava pensando que tudo não passara de história falsa.

Numa sexta-feira, Márcia sentiu como se um bolo estivesse parado na sua garganta. Sensação terrível. Bebeu água. A sensação continuou forte. Na hora do almoço, sentou-se para comer. Não conseguiu. Algo impedia que a comida descesse. Bebeu mais água. A fome aumentava. No jantar também não conseguiu comer nada. Quando Martins chegou, estranhou.

- O que houve, amor? Você está esquisita

- Nada.

- Você está naqueles dias?

- Não.

- Você está pálida.

- Não estou me sentindo bem. Acho que foi alguma coisa que comi no almoço. Amanhã estarei melhor, com certeza.

- Quer tomar alguma coisa para melhorar?

- Não, obrigada. Já tomei. Vou dormir e melhorarei. Hoje você não precisa fazer hora extra. Pode ir para casa.

- Está certo. Qualquer problema me telefona.

- Não se preocupe. Tudo ficará bem.

Martins saiu e Márcia deitou-se na cama. No dia seguinte, a mesma sensação na garganta. Estava morrendo de fome. Tentou comer pão e beber café. Não conseguiu. Agora nem líquido passava pela garganta. Desesperada começou a andar pela casa. Telefonou para Martins. Ele havia saído. Deixou recado. Deitou-se. As horas passavam e a fome a deixava louca. Hora do almoço, novamente não conseguiu comer. O desespero tomava conta dela.

Quando Martins chegou, ela estava desesperada. Assustado Martins disse:

- Vou levá-la ao pronto-socorro. Você não pode ficar assim.

- Não. Eu não quero.

- Você está horrível. Alguma coisa está acontecendo com você. Veja sua pele.

- Eu sei. Não sei.

Márcia começou a chorar. Martins, sem entender nada, a abraçou.

- Eu não quero morrer. – Márcia soluçava.

- Você não vai morrer. Vamos ao hospital.

- Não!

- O que eu posso fazer por você? Vou chamar Maria.

- Não! Não faça isso. Eu não quero que ela me veja assim.

- Alguma coisa tem que ser feita. Você não pode ficar assim.

- O que será que deu errado? Era para Maria sofrer e morrer. Não eu!

- Como assim?

- Quando eu lhe pedi para trazer um prato com resto de comida de Maria era para preparar um trabalho para ela morrer. Você trouxe, mas quem está morrendo sou eu.

Márcia contou para Martins o que ela havia feito para tê-lo só para ela. Martins entendeu o que estava acontecendo e contou para Márcia o que ele havia feito naquele dia. Márcia desabou. A sua dúvida se confirmara: o feitiço virara contra a feiticeira.

Uma semana, Márcia já não se levantava da cama. Maria estava ajudando-a. Fora levada a um médico que nada vira de errado. Passou remédios. Mas ela não conseguia beber. Foi levada para o hospital e colocada no soro. Mesmo assim, enfraquecia, emagrecia. Já era só pele e osso.

Estava horrível. Num último esforço:

- Martins, pelo amor de Deus, vá até o cemitério da Lapa e procure o túmulo onde enterrei o sapo e abra a boca dele.

- Como vou encontrar o túmulo?

- Não sei! Procure.
Martins saiu desconsolado. Andou pelo cemitério da Lapa procurando túmulos. Nos poucos que mexeu não encontrou nada.

- Márcia, não consegui encontrar nada.

- Leve-me até lá. Quem sabe eu o encontre.

- Como vou tirá-la do hospital?

- Não importa como. Tire-me daqui.

Martins subornou uma enfermeira e levou Márcia até o cemitério da Lapa. Vagarosamente, Márcia caminhou pelas alamedas. Não conseguia lembrar onde enterrara o sapo. Triste desanimou.

- Leve-me para casa. Quero morrer na minha cama.

Maria não saía do pé de sua cama. Pronta para ajudar no que fosse preciso. Sempre que Márcia abria os olhos, via o rosto de Maria.

Naquela noite, Márcia morreu. Pesava apenas 20 quilos.


O Pacto Maldito e Outras Histórias de Morte - José Cláudio da Silva - Casa do Novo Autor, São Paulo, 2006

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