terça-feira, 26 de abril de 2016

Homem dos Feriados


Você vai chegar atrasado, disse ela. Ele se recostou na cadeira, cansado.

— Eu sei — respondeu ele.

Estavam na cozinha tomando café da manhã. David não havia comido muito. Na maior parte do tempo, bebera café preto e olhara para a toalha da mesa. Era estampada com linhas que lhe pareciam rodovias que se cruzavam. — E então? — disse ela.

Ele estremeceu e tirou os olhos da mesa.

— Sim — disse ele. — Está bem.

Ele continuou sentado.

— David – disse ela.

— Eu sei, eu sei — disse ele. — Vou me atrasar.

Não estava zangado. Não havia um pingo de ressentimento nele.

— É claro que vai — disse ela, passando manteiga em sua torrada. Espalhou também a consistente geleia de framboesa, mordeu um pedaço, e mastigou-o ruidosamente.

David se levantou e atravessou a cozinha. Na porta, parou e se virou. Olhou para a nuca da esposa.

— Por que não posso? — perguntou de novo.

— Porque não pode e pronto — disse ela.

— Mas por quê?

— Porque eles precisam de você — disse ela. — Porque pagam bem e você não poderia fazer outra coisa. Não é óbvio?

— Eles poderiam encontrar outra pessoa.

— Ah, pare com isso — disse ela. — Você sabe que não poderiam.

Ele cerrou os punhos.

— Por que devo ser o único? — perguntou ele.

Ela não respondeu. Ficou ali sentada, comendo sua torrada.

— Jean?

— Não há mais nada a dizer — respondeu, mastigando. Ela se virou.

— Agora, quer fazer o favor de ir? — disse. — Não deveria se atrasar hoje.

David sentiu um calafrio.

— Não — disse ele —, não hoje.

Saiu da cozinha e subiu a escada. Lá em cima, escovou os dentes, poliu os sapatos e colocou uma gravata. Antes das oito da manhã, estava novamente lá embaixo.

Entrou na cozinha.

— Até logo — disse.

Ela lhe ofereceu a face e ele a beijou.

— Tchau, querido — disse ela. — Tenha um... — parou abruptamente. — ... bom dia? — ele terminou a frase por ela.

— Obrigado — ele se virou —, terei um ótimo dia.

Há muito tempo parara de dirigir. Todas as manhãs, ia a pé até a estação ferroviária. Sequer gostava de pegar carona com alguém ou ir de ônibus. Na estação, ficava do lado de fora, na plataforma, esperando o trem. Não levava um jornal consigo. Nunca mais comprara um. Não gostava de ler os jornais.

— Bom dia, Garret.

Ele se virou e viu Henry Coulter, que também trabalhava na cidade. Coulter lhe deu uns tapinhas nas costas.

— Bom dia — disse David.

— Como vai? — perguntou Coulter.

— Bem. Obrigado.

— Que bom. Ansioso pelo 4 de julho?

David engoliu em seco.

— Bem... — começou ele.

— Quanto a mim, estou levando a família para o campo — disse Coulter.

— Nada de fogos de artifício mixurucas para nós. Meter todo mundo no carro e rodar até não vermos sinal algum do foguetório.

— Vai dirigindo? — perguntou David.

— Sim, senhor — respondeu Coulter. — Para o mais longe que pudermos.

Aquilo começou por si só. Não, pensou ele, agora não. Forçou-o a voltar para a escuridão. — ... negócio de publicidade — Coulter terminava a frase.

— O quê? — perguntou.

— Disse que acredito que as coisas vão bem no ramo da publicidade.

David pigarreou.

— Oh, sim — disse ele. — Muito bem.

Sempre se esquecia da mentira que contara a Coulter.

Quando o trem chegou, sentou-se no vagão de não fumantes, sabendo que Coulter sempre fumava um charuto no caminho. Não queria se sentar com Coulter. Não agora. Durante todo o trajeto para a cidade, ficou olhando pela janela. Principalmente, para a estrada e o tráfego. Mas, por um momento, enquanto o trem sacudia sobre uma ponte, olhou para a superfície do lago, lisa como um espelho. Quando voltou a erguer a cabeça, olhou para o sol.

Estava prestes a entrar no elevador quando parou.

— Sobe? — disse o homem com o uniforme grená. Ele olhou para David insistentemente.

— Sobe? — disse. Então, fechou as portas.

David ficou imóvel. As pessoas começaram a se agrupar em torno dele.

Num instante, ele se virou e abriu caminho entre elas, passando pela porta giratória. O calor abafado de julho o envolveu. Caminhou ao longo da calçada como um sonâmbulo.

No quarteirão seguinte, entrou em um bar. Lá dentro estava frio e escuro. Não havia clientes. Nem mesmo o barman estava visível. David afundou-se num compartimento reservado e tirou o chapéu. Inclinou a cabeça para trás e fechou os olhos. Não conseguiria fazer. Simplesmente, não podia ir até seu escritório. Não importa o que Jean diga, não importa o que qualquer um diga. Apertou as mãos na beirada da mesa e espremeu-as até que os dedos perderem a cor. Simplesmente, não podia.

— Posso ajudá-lo? — uma voz perguntou.

David abriu os olhos. O barman estava no compartimento reservado, olhando para ele.

— Sim, humm... uma cerveja — disse ele.

Detestava cerveja, mas sabia que tinha de comprar algo para ter o privilégio de se sentar naquele lugar fresco e silencioso, sem ser perturbado. Não quis beber.

O barman trouxe a cerveja e David pagou por ela. Então, quando o homem foi embora, começou a girar lentamente o copo sobre o tampo da mesa.

Enquanto fazia isso, aquilo começou de novo. Com um choque, interrompeu-o.

— Não! — disse ele, brutalmente.

Num instante, levantou-se e deixou o bar. Passava das dez. E claro que isso não importava. Sabiam que ele sempre se atrasava. Sabiam que ele sempre tentava escapar daquilo e nunca conseguia.

Seu escritório ficava na parte de trás do conjunto, um pequeno cubículo mobiliado apenas com um tapete, um sofá e uma mesa pequena, sobre a qual havia lápis e papel branco. Era tudo que precisava. Já tivera uma secretária, mas não gostara da ideia de ela ficar sentada do lado de fora, ouvindo-o gritar.

Ninguém o viu entrar. Entrou por uma porta reservada. Uma vez lá dentro, trancou novamente a porta e, em seguida, tirou o paletó e largou-o sobre a mesa. O escritório estava abafado e ele o atravessou e abriu a janela.

Lá embaixo, a cidade em movimento. Contemplou-a. Quantos deles?, pensou.

Suspirando pesadamente, ele se virou. Bem, estava ali. Não havia sentido hesitar mais tempo. Já estava comprometido. O melhor a fazer era acabar logo com aquilo e ficar livre.

Baixou a persiana, caminhou até o sofá e se deitou. Irritou-se um pouco por não encontrar uma boa posição para a almofada na qual apoiou a cabeça, mas, depois, esticou-se e ficou quieto. Quase imediatamente, sentiu suas pernas ficando dormentes.

Começou.

Desta vez, não cortou. Corria por seu cérebro como gelo derretido. Avassalador como o vento invernal. Girava como redemoinhos de neve. Saltou, correu, cresceu e explodiu; sua mente foi tomada. Enrijeceu o corpo e começou a arfar, seu peito sacudido pela respiração, o coração violentamente disparado. Suas mãos se contraíram como garras brancas, apertando e arranhando o sofá. Tremia, gemia, se contorcia. Finalmente, ele gritou. E gritou por um longo tempo.

Quando acabou, permaneceu deitado no sofá, lânguido e imóvel, olhos vidrados como bolas de cristal, congelado. Quando teve condições, ergueu o braço e consultou o relógio de pulso. Quase duas da tarde.

Esforçou-se para ficar de pé. Seus ossos pesavam como chumbo, mas conseguiu se arrastar até sua mesa e sentar-se. Ali, pôs-se a escrever em uma folha de papel e, quando terminou, desabou sobre a mesa.

Completamente exaurido, mergulhou em um sono profundo.

Mais tarde, acordou e levou a folha de papel ao seu superior, que, examinando-a, assentiu.

— Quatrocentos e oitenta e seis, certo? — disse o superior. — Você tem certeza?

— Tenho certeza — disse David, calmamente. — Assisti a cada um.

Não mencionou que Coulter e sua família estavam entre eles.

— Tudo bem — disse o seu superior. — Agora, vejamos. Quatrocentos e cinquenta e dois em acidentes de carro, dezoito por afogamento, sete de insolação, três por causa dos fogos de artifício, e seis de causas diversas.

Como a garotinha queimada até a morte, David pensou. Como o menino que tomaria formicida. Como a mulher eletrocutada; ou o homem picado por uma cobra.

— Bem — disse o superior —, vamos dizer que foram... deixe-me ver, quatrocentos e cinquenta. Sempre é impressionante quando morrem mais pessoas do que prevemos.

— Claro — disse David.

A estatística saiu na primeira página de todos os jornais da tarde.

Enquanto David voltava para casa, o homem em frente a ele se virou para o vizinho e disse:

— O que eu gostaria de saber é como eles calculam isso?

David se levantou e foi sentar no final do vagão. Durante todo o percurso até sua estação, ficou concentrado no som das rodas do trem, pensando no próximo feriado.


"O Incrível Homem que Encolheu: e Outras Histórias" - Richard Matheson - Osasco, SP - Novo Século Editora, 2010.

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