segunda-feira, 24 de outubro de 2011

O terrível Velho

Era intenção de Ângelo Ricci, Joe Czanek e Manuel Silva fazerem uma visita ao Velho Ruim. Esse ancião morava sozinho em uma casa antiguíssima na Rua d’Água, perto do mar, e tinha a reputação de ser ao mesmo tempo muito rico e muito frágil.

Tratava-se de uma combinação de qualidades muito atraentes para homens da profissão dos senhores Ricci, Czanek e Silva, que ganhavam a vida praticando aquela atividade que o tempo dignificou: o roubo.

Os habitantes de Kingsport diziam e pensavam muitas coisas sobre o Velho Ruim que, em geral, o mantinham a salvo das atenções de cavalheiros como o Sr. Ricci e seus companheiros, apesar do fato quase certo de que ele ocultava uma fortuna de grandeza indefinida em algum local de sua morada bolorenta e venerável. Com efeito, era pessoa estranhíssima, de quem se acreditava ter sido no passado capitão de clípere das Índias Orientais; era tão velho que ninguém se lembrava do tempo em que era jovem, e tão taciturno que poucos conheciam seu verdadeiro nome.

Entre as árvores retorcidas do pátio fronteiro de sua vetusta e desleixada vivenda, ele conservava uma estranha coleção de grandes pedras, agrupadas de maneira esquisita e pintadas de modo a se assemelharem aos ídolos de um obscuro templo oriental. Essa coleção afugentava, amedrontados, a maioria dos meninos que gostavam de implicar com o Velho Ruim por causa de seus cabelos e de sua barba branca, ou de quebrar as janelas de pequenas vidraças de sua casa com perversos petardos.

No entanto, haviam outras coisas que assustavam as pessoas mais velhas e mais curiosas que às vezes se esgueiravam até a casa para olhar pelas vidraças empoeiradas. Diziam essas pessoas que sobre uma mesa no andar térreo viam-se várias garrafas singulares, cada uma delas tendo em seu interior um pedacinho de chumbo suspenso por um fio, à guia de pêndulo. E diziam que o Velho Ruim conversava com essas garrafas, dirigindo-se a elas por nomes como Jack, Cicatriz, Tomazão, Zé Espanhol, Peters e Imediato Ellis, e que sempre que falava a uma das garrafas, o pequenino pêndulo de chumbo em seu interior produzia certas vibrações claras, como se respondesse.

Aqueles que tinham visto o Velho Ruim, alto e macérrimo, mantendo essas esquisitas palestras não procuravam olhá-lo de novo. Mas Angelo Ricci, Joe Czanek e Manuel Silva não tinham sangue de Kingsport; pertenciam àquela geração alienígena, nova e heterogênea, que se situava fora do cativante círculo da vida e das tradições da Nova Inglaterra, e viam no Velho Ruim tão somente um barbudo trôpego e quase caduco, incapaz de caminhar sem a ajuda de sua bengala nodosa e cujas mãos magras e débeis tremiam deploravelmente. A seu modo, na verdade até compadeciam-se daquele sujeito solitário e impopular, de quem todos fugiam e para quem os cães ladravam de maneira singular. Entretanto, trabalho é trabalho, e para um ladrão que dedicou sua alma à profissão há uma atração e um desafio em um homem idoso e débil que não tinha conta no banco e que pagava suas poucas compras na loja da cidade com ouro e prata da Espanha, cunhada há dois séculos.

Os senhores Ricci, Czanek e Silva escolheram para sua visita a noite de 11 de abril. O senhor Ricci e o senhor Silva deveriam entrevistar-se com o infeliz cavalheiro, enquanto o senhor Czanek esperaria, a eles e à sua carga, presumivelmente metálica, com um carro na Rua do Cais, ao lado do portão do alto muro nos fundos da casa do ancião. Foi o desejo de evitar explicações desnecessárias no caso de inesperadas intrusões da força policial que levou a esse plano de partida serena e sem alarde. Tal como combinado, os três aventureiros puseram-se a caminho separadamente, a fim de evitar quaisquer suspeitas malévolas posteriores.

Os senhores Ricci e Silva se encontraram no portão de entrada da casa, na Rua d’Água, e embora não gostassem nada da maneira como a lua brilhava, iluminando as pedras pintadas através dos galhos florescentes das árvores retorcidas, tinham coisas mais importantes em que pensar além de tolas superstições. Temiam que fossem obrigados a tarefas desagradáveis para obrigar o Velho Ruim a se mostrar loquaz a respeito de seu tesouro de ouro e prata, pois os velhos lobos-do-mar são notavelmente cabeça-dura e avarentos.

Mas, afinal, ele era velhíssimo e debilitadissimo e havia dois visitantes. Os senhores Ricci e Silva eram experientes na arte de persuadir pessoas obstinadas, e os gritos de um homem fraco e excepcionalmente venerável poderiam ser abafados com facilidade. Assim refletindo, chegaram até uma janela iluminada e ouviram o Velho Ruim conversar infantilmente com suas garrafas com pêndulos. Depois, colocaram máscaras e bateram cortesmente na porta de carvalho, manchada pelo tempo.

A espera pareceu interminável ao Sr. Czanek, que se remexia, impaciente, no carro coberto junto ao portão dos fundos da casa do Velho Ruim, na Rua do Cais. Tinha o coração mais sensível do que o dos comuns mortais, e não apreciou em nada os gritos medonhos que ouviu na casa antiga, pouco depois da hora aprazada para a visita. Não havia ele recomendado aos colegas que mostrassem a maior gentileza possível para com o patético ex-capitão? Nervoso, ele vigiava aquela estreita porta de carvalho no muro revestido de hera. Freqüentemente consultava o relógio e se admirava com a demora. Haveria o ancião morrido antes de revelar onde ocultara seu tesouro, tornando forçosa uma busca rigorosa?

Ao Sr. Czanek não agradava esperar tanto tempo no escuro e em tal local. Percebeu então passadas suaves ou arrastar de pés no caminho do outro lado do portão, ouviu que abriam de leve a tranca enferrujada e viu a porta, estreita e pesada, abrir-se para o lado de dentro. E à luz pálida da única luz da rua, esforçou-se para ver o que os colegas tinham trazido de dentro daquela casa sinistra, que parecia agora maior do que nunca. Entretanto, ao olhar, não viu aquilo que havia esperado; pois não eram seus camaradas que estavam ali, mas apenas o Velho Ruim, apoiado serenamente em sua bengala nodosa e tendo nos lábios um sorriso tétrico. O Sr. Czanek jamais havia notado a cor dos olhos daquele homem; eram amarelos.

Coisas pequenas causam considerável agitação em cidadezinhas, e foi por isso que a gente de Kingsport falou durante toda aquela primavera e todo aquele verão a respeito dos três corpos que haviam sido trazidos pela maré, impossíveis de identificar, horrivelmente dilacerados, como por obra de muitos cutelos, e horrivelmente mutilados, como que pisados por muitas botas cruéis. E algumas pessoas até se detiveram a falar e fatos triviais como o carro abandonado que havia sido encontrado na Rua do Cais, ou de alguns gritos notavelmente inumanos, provavelmente de algum animal extraviado ou de um pássaro migrante, ouvido de noite por cidadãos despertos.

Mas por todo esse disse-me-disse ocioso de cidade pequena, o Velho Ruim não demonstrou qualquer interesse. Era, por sua própria natureza, pessoa reservada, e quando se é idoso e débil, as reservas naturais sem dúvida redobram. Ademais, um lobo-do-mar tão entrado em anos só podia ter sido testemunhas de vintenas de fatos muito mais excitantes, nos dias longínquos de sua juventude já esquecida.


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