Este relato é verdadeiro e cercado por muitas circunstâncias que podem induzir qualquer homem sensato a acreditar nele. Foi enviado por um cavalheiro, um juiz da paz em Maidstone, no Kent, e pessoa de muita inteligência, a um amigo seu em Londres, tal como está aqui redigido.
O texto é certificado por uma dama parente do citado juiz da paz e que é pessoa de mente sóbria e de grande compreensão, a qual vive em Canterbury, a umas poucas portas da casa em que mora a senhora Bargrave, nomeada no relato. O juiz da paz acredita que sua parente é de espírito tão atilado que nunca se deixaria enganar por qualquer fraude. Ela própria garantiu-lhe positivamente que a questão toda tal como aqui relatada e redigida constitui a verdade, e a mesma coisa que ela ouviu aproximadamente nas mesmas palavras da boca da mesma senhora Bargrave, a qual, ela sabe, não tinha razão para inventar e divulgar tal história, nem desejo de forjar e contar uma mentira, sendo uma mulher muito honesta e virtuosa, e toda a sua vida um exemplo de piedade.
O proveito que podemos tirar desse documento é ter em mente que há uma vida por vir depois desta e um Deus justo que retribuirá à cada um segundo os atos feitos com este corpo atual; devemos, portanto, refletir no que tem sido a nossa vida; não esquecer de que o tempo de que dispomos é curto e incerto e que, se quisermos escapar à punição reservada aos ímpios e alcançar a recompensa dos que procedem bem, que é a vida eterna, temos de, no tempo que nos resta, voltar a Deus por um rápido arrependimento, deixando de co¬meter o mal e aprendendo a fazer o bem. partindo em busca de Deus, se com felicidade Ele possa ser de nós encontrado, e de levar tais vidas no futuro que Lhe possam ser agradáveis.
Isto que vou contar é tão raro em todas as suas circunstâncias, e fundado em tão boa autoridade, que toda a minha leitura e as minhas conversas nada me forneceram de semelhante. E coisa apta a satisfazer o investigador mais destro e exigente.
A senhora Bargrave é a pessoa a quem a senhora Veal apareceu depois de falecer. Ela é minha amiga íntima, e posso atestar-lhe a probidade, por estes últimos quinze ou dezesseis anos, por meu próprio conhecimento. E posso confirmar a reputação de honestidade de que gozou desde sua mocidade até o momento em que a conheci, o que é necessário; porque, em função do relato que fez da aparição da senhora Veal, ela é objeto de calúnia por parte de algumas pessoas que são amigas do irmão da mencionada senhora Veal, às quais o relato da aparição parece uma ofensa, e fazem o que podem para acabar com a reputação da senhora Bargrave e para ridicularizar a história que conta.
Mas, dadas as circunstâncias do que se passou e a boa disposição da senhora Bargrave, não obstante os maus-tratos inéditos a que foi sujeita por um marido muito cruel, não há em sua fisionomia o menor sinal de desalento. Nem eu a ouvi pronunciar uma expressão de desespero ou de queixa, nem mesmo quando submetida às barbaridades do marido, de que eu fui testemunha, assim como várias outras pessoas cuja reputação não se pode pôr em dúvida.
É preciso que vocês saibam que a senhora Veal era uma moça solteira e nobre de cerca de trinta anos de idade e, por alguns anos, vinha sofrendo de ataques que nela se manifestavam porque ela interrompia o que estava dizendo com alguma extravagância abrupta. Ela era sustentada pelo único irmão que tinha, e tomava conta da casa deste último em Dover. Era uma mulher muito religiosa, e o irmão um homem sóbrio, ao que tudo demonstrava, mas agora ele faz o que pode para reduzir a pedaços esta história.
A senhora Veal era intimamente ligada à senhora Bargrave desde a infância. Naquela época, as condições em que vivia a senhora Veal eram ruins. O pai não tomava cuidado das crianças como devia, o que as expunha a privações, e também a senhora Bargrave vivia naqueles tempos com um pai cruel, embora não lhe faltassem nem comida nem roupa, coisas que fal¬tavam à senhora Veal. Estava, portanto, dentro das possibilidades da senhora Bargrave ajudar a senhora Veal de várias maneiras, o que esta última muito apreciava. Muitas vezes, ela dizia:
- Senhora Bargrave, a senhora não é apenas a melhor, mas é a única amiga que tenho no mundo e nenhuma circunstância na vida dissolverá jamais tal amizade.
Elas lamentavam juntas a fortuna adversa e liam o livro de Drelincourt sobre a morte e outros livros bons. E assim, como duas amigas cristãs, elas se con¬fortavam reciprocamente.
Algum tempo depois, os amigos do senhor Veal arranjaram-lhe um lugar na Alfândega de Dover, o que fez com que a senhora Veal, a pouco e pouco, se desprendesse da intimidade com a senhora Bargrave, embora nunca houvesse entre as duas, alguma coisa como uma briga. Mas, gradualmente, surgiu entre elas uma indiferença, até que, por fim, a senhora Bargrave passara dois anos e meio sem ver a amiga, embora por cerca de um ano a senhora Bargrave tivesse estado ausente de Dover e houvesse passado os últimos seis meses em Canterbury morando em casa própria.
Em tal casa, em 8 de setembro último, 1705, ela estava sentada sozinha na manhã, meditando sobre sua vida desafortunada e buscando argumentos que a inclinassem à resignação devida à Providência, embora sua situação parecesse difícil. "E", pensou ela, "eu fui ajudada até agora e não duvido de que ainda o serei e estou certa de que minhas aflições terminarão quando for mais apropriado" e, depois de tais pensamentos, tomou de sua obra de costura, coisa que ela mal acabara de fazer quando ouviu bater à porta. Levantou-se para ver quem era e deu com a senhora Veal, que estava de roupa de montaria. Naquele exato momento, o relógio bateu doze badaladas.
-Madame - disse a senhora Bargrave -, estou surpreendida em vê-la. Por tanto tempo estivemos separadas!
Mas disse-lhe que ficava feliz em voltar a vê-la, e fez menção de dela se aproximar, com o que concordou a senhora Veal, até que os lábios das duas quase se tocaram.
E então a senhora Veal passou a mão pelos olhos e disse:
-Não me sinto muito bem.
Disse à senhora Bargrave que partiria sozinha numa viagem e tivera um grande desejo de visitá-la antes de seguir.
-Mas - ponderou a senhora Bargrave - como é que a senhora parte em viagem sozinha? Isso espanta-me, porque sei que seu irmão lhe é tão aficionado.
-Ora - disse a senhora Veal -, enganei meu irmão e vim sozinha, tal era o meu desejo de ver a senhora, antes de partir em viagem.
Assim a senhora Bargrave seguiu com ela para outro aposento e a senhora Veal sentou-se numa cadeira de braços, exatamente onde a senhora Bargrave estivera sentada quando ouvira a senhora Veal bater à porta.
Então disse a senhora Veal:
-Minha querida amiga, eu vim renovar nossa amizade antiga, e peço seu perdão por me ter apartado. E, se puder perdoar-me, a senhora é uma das melhores mulheres.
-Ora - disse a senhora Bargrave -, não mencio¬ne uma tal coisa. Isso nunca me preocupou. Posso facilmente perdoá-la.
-Que pensou a senhora de mim? - perguntou a senhora Veal.
-Pensei - respondeu a senhora Bargrave - que a senhora era como o resto do mundo e que a prosperidade a tinha feito esquecer a nossa ligação.
Então a senhora Veal lembrou à senhora Bargrave os muitos serviços amistosos que esta lhe tinha prestado no passado e muito das conversas que, uma com a outra, tinham mantido no tempo de adversidade; lembrou-lhe os livros que liam e, em particular, o conforto que recebiam da meditação do ensaio de Drelincourt sobre a morte, que ela classificou como o melhor dos livros sobre o assunto. Também mencionou os livros que o doutor Sherlock e dois autores holandeses traduzidos escreveram sobre a morte e vários outros. Mas disse que Drelincourt possuía a visão mais clara da morte e de nossa futura condição, entre todos os que tinham tratado do assunto. Então pergun¬tou à senhora Bargrave se ela dispunha de um exemplar da obra de Drelincourt.
-Sim - disse a senhora Bargrave.
-Traga-o - pediu a senhora Veal.
E então a senhora Bargrave subiu ao andar de cima e trouxe o livro.
-Querida senhora Bargrave - afirmou a senhora Veal se os olhos da fé estivessem abertos como os olhos do corpo, veríamos numerosos anjos a nosso redor, para guardar-nos. As idéias que temos do céu não são nada perto do que é, como diz Drelincourt. Portanto, suporte com paciência seus sofrimentos e acredite que o Todo-Poderoso a tem em particular consideração e que as tribulações que a afligem são marcas do favor de Deus. E quando essas tribulações tiverem alcançado o objetivo pelo qual foram manda¬das elas lhe serão retiradas. E acredite-me, minha querida amiga, acredite no que lhe digo: um minuto de futura felicidade a recompensará infinitamente de todos os seus sofrimentos; pois nunca poderei acreditar - (nesse ponto, a senhora Veal bateu com a mão no joelho com grande veemência, a mesma veemência que marcou tudo o que dizia) - que Deus suportará que a senhora passe todos os seus dias em aflição; mas esteja certa de que seus males a deixarão, ou a senhora os deixará dentro em breve.
Falou de uma maneira tão celestial e patética que a senhora Bargrave chorou várias vezes, tanto aquilo tudo a impressionou.
Então a senhora Veal mencionou o livro do doutor Hoerneck sobre o ascetismo, no fim do qual ele faz um relato da vida dos cristãos primitivos. Ela recomendou tais modelos para nossa imitação, e disse que as conversas deles não eram como as de hoje em dia.
-Pois agora — disse ela — só há conversas vãs e superficiais, muito diferentes das que mantinham. Eles falavam para edificação recíproca e para que aumen¬tasse mutuamente a fé; assim não eram como nós somos, e nós não somos como eram. Mas – acrescentou - poderíamos fazer como faziam. Havia entre eles uma amizade cordial, mas onde acharemos tal maravilha hoje em dia?
-É de fato difícil - respondeu a senhora Bargrave - encontrar um verdadeiro amigo nos dias que correm.
-O senhor Norris - disse a senhora Veal - escreveu um bonito livro de versos intitulado amizade na perfeição, livro que eu admiro enormemente. A senhora conhece o livro?
-Não - disse a senhora Bargrave -, mas publiquei os meus próprios versos.
-A senhora publicou? - perguntou a senhora Veal. - Então, vá buscá-los.
A senhora Bargrave buscou os versos no an¬dar de cima e os ofereceu à senhora Veal, para que os lesse, mas esta os recusou e disse que olhar para baixo lhe daria dor de cabeça; pediu então à senho¬ra Bargrave que lesse os versos, coisa que esta última fez.
Quando admiravam "Amizade", a senhora Veal disse:
-Querida senhora Bargrave, eu a amarei para sempre.
Nos versos usam-se por duas vezes as palavras "pertencentes aos Campos Elíseos".
Disse a senhora Veal: - Esses poetas têm tais nomes para o céu!
Passava muitas vezes a mão pelos olhos e dizia:
-Não acha a senhora que estou muito afetada por meus ataques?
-Não - respondeu a senhora Bargrave -, acho que está com tão boa aparência quanto jamais a vi.
Depois de toda essa conversação, em que a aparição pronunciou palavras de uma qualidade muito superior às que a senhora Bargrave disse que poderia usar, e que consistiu em muito mais do que aquilo de que se podia lembrar (não se deve pensar que seria possível reter inteiramente uma conversa que durou uma hora e três quartos, embora a senhora Bargrave declare que se lembra da maior parte do que trataram), ela pediu à senhora Bargrave que escrevesse, em seu nome, uma carta a seu irmão, dizendo-lhe que desse anéis a tais e tais pessoas, e que havia uma bolsa com ouro no escritório dela, e que ela lhe pedia que desse duas peças de ouro ao primo Watson.
Como falava muito e com pressa, a senhora Bargrave entendeu que lhe vinha um dos ataques a que era sujeita, e colocou-se assim numa cadeira bem diante dos joelhos dela, para impedir que caísse ao chão, se sobreviesse o ataque. Pois a cadeira de braços, pensou a senhora Bargrave, impediria que a senhora Veal caísse para qualquer dos lados. E, tentando divertir a senhora Veal, tomou de uma das mangas do vestido desta e elogiou o tecido. A senhora Veal disse-lhe que era de seda lavada, e feita recentemente.
Não obstante isso, a senhora Veal insistiu em seu pedido, e disse à senhora Bargrave que não devia recusar-lhe o favor; e queria que contasse ao irmão toda a conversa, quando tivesse uma oportunidade para tanto.
-Querida senhora Veal - respondeu a senhora Bargrave isso parece tão fora de propósito que não posso dizer como cumprir o seu desejo. E que história mortificante será a nossa conversa para um jovem!
-Bem! - disse a senhora Veal - não quero que recuse.
-Parece-me muito melhor - ponderou a senhora Bargrave - que a senhora mesma o faça.
-Não - respondeu a senhora Veal embora isso lhe pareça agora fora de propósito, a senhora compreenderá a razão por que o peço mais tarde.
A senhora Bargrave, então, para satisfazer a insistência com que lhe era feito o pedido, dispunha-se a buscar caneta e tinta, mas a senhora Veal disse-lhe:
-Não faça nada agora. Faça-o quando eu me for. Mas faça-o com certeza.
Isso foi uma das últimas coisas que lhe requereu ao despedir-se. E a senhora Bargrave prometeu o que lhe era solicitado.
Então, a senhora Veal pediu notícias da filha da senhora Bargrave. Esta respondeu que a filha não estava em casa.
-Mas se a senhora quiser vê-la - acrescentou a senhora Bargrave - eu a mandarei chamar.
-Faça isso - disse a senhora Veal.
Ao que a senhora Bargrave deixou a visitante e foi ter com um vizinho para que este chamasse a jovem senhorita Bargrave.
Quando a senhora Bargrave regressava, a senhora Veal estava do lado de fora da porta, na rua, diante do mercado de animais do sábado (que é dia de tal mercado) e parecia prestes a partir logo que a senhora Bargrave chegou-lhe perto.
Esta perguntou-lhe por que estava com tanta pressa. Respondeu a senhora Veal que devia partir, embora talvez não seguisse viagem antes de segunda-feira; e disse à senhora Bargrave que estimaria voltar a vê-la na casa do primo Watson antes de seguir viagem para onde ia. Então a senhora Veal disse que se despediria, e andou para longe da senhora Bargrave à vista desta última, até que uma volta da rua não a dei¬xou mais ver, o que se deu exatamente à uma hora e quarenta e cinco minutos da tarde.
A senhora Veal morreu no dia 7 de setembro ao meio-dia, de seus ataques, e, antes de morrer, não dispôs de mais do que quatro horas de consciência. Nesse período, ela recebeu os sacramentos. No dia que se seguiu ao da aparição da senhora Veal, dia esse que foi um domingo, a senhora Bargrave sofreu muito de um resfriado e de uma dor de garganta, e não saiu de casa. Mas, na manhã de segunda-feira, ela mandou uma pessoa perguntar em casa do comandante Watson se a senhora Veal estava lá.
As pessoas da casa ficaram intrigadas com a pergunta da senhora Bargrave e mandaram-lhe dizer que a senhora Veal não estava lá, nem era esperada. Diante dessa resposta, a senhora Bargrave disse à empregada que esta certamente se enganara de nome, ou fizera alguma tolice.
E, embora estivesse doente, colocou o chapéu e foi ela própria à casa do comandante Watson, embora não conhecesse ninguém da família, para ver se a senhora Veal estava ou não lá. Eles disseram que muito os intrigava a pergunta, pois a senhora Veal não estivera na cidade; tinham certeza de que, se houvesse estado, tê-los-ia procurado.
-Estou certa - disse a senhora Bargrave - de que passou comigo no sábado quase duas horas.
Responderam-lhe que era impossível, pois eles teriam visto a senhora Veal, desde que esta houvesse vindo à cidade.
O comandante Watson chegou quando discutiam e disse que a senhora Veal estava certamente morta, e que se estava gravando o seu nome para colocar a inscrição no caixão. Isso muito surpreendeu a senhora Bargrave, que foi ver imediatamente o gravador e verificou que a notícia procedia.
Então ela relatou toda a história ao comandante Watson e família, e o vestido que a senhora Veal usara, e que riscas, que cores tinha, e que a senhora Veal lhe havia contado que era lavado.
Então, a senhora Watson exclamou:
-A senhora certamente a viu, pois ninguém sabia, além da senhora Veal e de mim, que o vestido era lavado.
A senhora Watson acrescentou que a descrição do vestido era exata.
-Pois - disse ela - eu ajudei a fazê-lo, eu própria.
A senhora Watson fez a notícia correr pela cidade, e sustentou a demonstração da verdade do que dizia a senhora Bargrave quanto à aparição da senhora Veal.
E o comandante Watson levou imediatamente dois cavalheiros à senhora Bargrave para ouvir-lhe o relato do acontecimento da própria boca.
E então a história espalhou-se com tal rapidez que cavalheiros e pessoas de qualidade, a parte judiciosa e cética do mundo, vieram vê-la em grupos, o que se tornou para ela uma tal carga que foi forçada a recolher-se; pois, em geral, acreditavam no que ela dizia, e viam claramente que a senhora Bargrave não era uma hipocondríaca, pois sempre aparecia com um aspecto tão satisfeito e agradável que conquistou a estima de todas as pessoas de posição, e pensa-se que é um grande favor obter o relato da boca da própria senhora mencionada.
Eu deveria ter contado a vocês, antes, que a senhora Veal disse à senhora Bargrave que esperava a irmã e o cunhado, vindos de Londres para visitá-la.
Respondeu a senhora Bargrave: - Como se dá que a senhora arranjou tal programa tão fora de ordem?
-Não podia ser de outra forma - afirmou-lhe a senhora Veal.
E a irmã dela e o cunhado chegaram a Dover, justo no momento em que a senhora Veal expirava.
A senhora Bargrave perguntou-lhe se queria tomar chá.
Respondeu a senhora Veal: - Não me seria desagradável. Mas garanto que aquele louco (com o que se referia ao senhor Bargrave) quebrou todos os seus utensílios de chá.
-Não obstante - disse a senhora Bargrave -, tirarei alguma coisa em que possa tomar chá.
A senhora Veal, no entanto, recusou a bebida e disse:
- Não tem importância. Deixe isso.
Todo o tempo que permaneci com a senhora Bargrave, tempo que somou algumas horas, ela rememorou outros ditos da senhora Veal. E esta disse mais uma coisa material à senhora Bargrave, a saber, que o velho senhor Breton concedeu à senhora Veal dez libras por ano, o que constituía um segredo, e desconhecido para a senhora Bargrave até que a senhora Veal o contou.
A história da senhora Bargrave nunca varia, o que intriga aqueles que põem em dúvida a verdade do relato, ou não querem reconhecê-la. Uma empregada num quintal vizinho à casa da senhora Bargrave ouviu-a falar com alguém no momento em que a senhora Veal estava com ela. A senhora Bargrave foi ter com seu vizinho de porta logo depois de despedir-se da senhora Veal, contou a tal vizinho a conversa maravilhosa que mantivera com uma velha amiga. O livro de Drelincourti sobre a morte tem sido, desde que isso aconteceu, comprado extraordinariamente. E deve ser observado que, não obstante todo o cansaço e aborrecimento que a senhora Bargrave sofreu por causa dessa aparição, ela nunca recebeu o valor de um centavo por causa do relato, nem suportou que sua filha recebesse qualquer coisa de qualquer pessoa, o que de¬monstra que não tem interesse algum nessa história.
Mas o senhor Veal faz o que pode para abafar o assunto, e diz que está pronto a ver a senhora Bargrave, mas, contudo, é uma questão de fato que esteve com o comandante Watson desde que lhe morreu a irmã, mas nunca se aproximou da senhora Bargrave. E alguns dos amigos dele dizem que ela é uma grande mentirosa, e que ela tinha conhecimento da pensão de dez libras por ano, concedida pelo senhor Breton. Mas a pessoa que afirma isso tem a reputação de um mentiroso no¬tório entre pessoas que sei serem de caráter ilibado. O senhor Veal é demasiado cavalheiro para dizer que ela mente, mas se limita a dizer que ela ficou louca em virtude dos maus-tratos que sofreu de parte do marido. Mas a senhora Bargrave não necessita de mais do que se apresentar porque, com sua presença, ela refuta essa acusação de loucura. O senhor Veal diz que perguntou à irmã, no leito de morte, se queria fazer alguma disposição testamentária, ela respondeu que não.
Agora, as coisas que a senhora Veal, em sua aparição, queria doar eram tão desprovidas de importância, não havendo nenhum propósito de fazer justiça com a doação, que o projeto daquela senhora me parece consistir em habilitar a senhora Bargrave a de¬monstrar a verdade da aparição, confirmando ao mun¬do a realidade do que vira e ouvira, e garantindo a sua reputação no meio das pessoas razoáveis e compreensivas da humanidade.
Além disso, o senhor Veal confessa que havia uma bolsa de ouro, mas que ela não foi achada na escrivaninha da senhora Veal e sim no estojo dos pentes. Isso não parece provável, pois a senhora Watson diz que a senhora Veal tomava tal cuidado com a chave de sua escrivaninha que não a confiava a ninguém. Se era assim, não há dúvida de que não colocaria seu ouro fora da escrivaninha. E o fato de que a senhora Veal passava com freqüência a mão pelos olhos e perguntava à senhora Bargrave se os ataques que ela sofria não a haviam afetado, parece-me tudo feito de propósito para relembrar os ataques à senhora Bargrave, para prepará-la a não julgar estranho que ela própria não escrevesse ao irmão para que ele distribuísse os anéis e o ouro, coisa que parecia tanto com o pedido de uma pessoa prestes a falecer. E esse foi o efeito produzido na senhora Bargrave, a quem tudo pareceu resultado dos ataques, e foi um dos muitos exemplos de seu enorme amor pela senhora Bargrave, e cuidado com ela, para que não temesse, o que transparece em toda a maneira de conduzir-se a aparição, particularmente em que veio ter com a senhora Bargrave durante o dia, quando esta estava sozinha, e evitou a saudação; e também na maneira de partir, para impedir uma segunda tentativa de saudação, de proximidade, de beijos.
Não posso descobrir por que motivo o senhor Veal julga que este relato é uma ofensa (como fica evidente pelo fato de que tenta abafá-lo), pois, em geral, as pessoas julgam que a senhora Veal é um bom espírito, dado o teor celestial de sua conversação. Seus dois grandes objetivos foram reconfortar a senhora Bargrave em suas aflições e pedir-lhe perdão pela quebra de amizade, com uma conversa pia feita para encorajar a amiga. Supor que a senhora Bargrave possa ter inventado uma tal história do meio-dia de sexta-feira até o meio-dia de sábado (desde que se acredite que ela soube de imediato da morte da senhora Veal), sem confundir circunstâncias e sem ter interesse algum na coisa, implica julgá-la mais inteligente, com mais sorte e mais velhaca também do que passará pela cabeça de uma pessoa qualquer.
Perguntei-lhe se ouviu um som quando bateu com a mão no joelho da senhora Veal. Ela diz que disso não se recorda, e acrescenta:
- Parecia ser tão substancial quanto eu, que com ela falava; e é tão possível persuadir-me de que é sua aparição que fala comigo como persuadir-me que eu não vi a senhora Veal realmente, pois eu não sofri qualquer medo. Eu a recebi como uma amiga, e como tal dela me despedi. Eu não daria um centavo para fazer com que qualquer pessoa acreditasse em mim. Não tenho qualquer interesse nisso. O que isso me acarretará, e por um longo tempo, pelo que sei, são problemas. E se a coisa não fosse divulgada casualmente, nunca teria se tornado pública.
Mas agora ela diz que fará um proveito íntimo do acontecido, e recolher-se-á o mais possível; e tem cumprido esse propósito. Ela conta que um cavalheiro veio de uma distância de trinta milhas para ouvir o relato, e que ela narrou a história para uma sala cheia de gente. Vários cavalheiros escutaram a história da própria boca da senhora Bargrave.
A coisa muito me impressionou, e nela acredito tanto quanto na história mais bem fundamentada. E parece-me estranho que tenhamos a tendência a negar a veracidade de fatos porque não podemos resolver coisas de que não possuímos noções certas ou demonstrativas.Em qualquer outro caso, a autoridade e a sinceridade da senhora Bargrave teriam bastado para confirmar o que contasse.
Daniel Defoe (1660-1731), o célebre autor de As aventuras de Robinson Crusoé
foi um dos mais prolíficos escritores que se conhece, com mais de 500
títulos publicados. Entre os inúmeros gêneros que abordou (religião,
política, sociologia, história, ficção, poesia) no seu jornal The Review
(que ele escrevia praticamente sozinho). Defoe acreditava profundamente
na reencarnação e escreveu Contos de Fantasmas baseado em
entrevistas ou relatos conhecidos. Segundo ele, os episódios aqui
relacionados – com exceção dos que estão agrupados sob o título de
"Falsos fantasmas" – são todos verdadeiros e, em alguns deles, ele
estaria disposta a ir em juízo, levando testemunhas e provas concretas.
"A aparição da senhora Veal" é um dos exemplos.
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