John Harrison contemplou a figura espadaúda e grave do Professor Kauperman, avançando em sua direção à entrada do laboratório, e disse:
- Oh, professor, espero que me desculpe. Mas a velha curiosidade não me deixou escapar esta também.
E com duas pinças pegou uma mão decepada que se encontrava num vidro de formol e completou:
- Tirei-lhe as impressões digitais para os meus arquivos.
Com acento grave na voz, Kauperman fê-lo compreender que o fato não tinha qualquer importância.
Mas, não podendo conter por mais tempo a sua curiosidade, Vanny, a assistente do laboratório, indagou firme:
- Que há de especial com esta mão, John?
- Quem melhor poderá responder? - idem à sua pergunta é o professor.
Vanny adiantou-se e atacou o velho professor com um par de olhos muito azuis e inquiridores. -
- Já sei, já sei, senhorita Vanny. Calculo o que irá me perguntar. Mas não espere que haja nada de científico nesta peça. Trouxe-a comigo... a bem dizer, nem mesmo sei porque.
E adiantando-se, Kauperman pegou as lâminas onde John fixara as impressões da mão decepada e narrou-lhes:
"Era o meu quinto mês na Ucrânia. Certa manhã, fui despertado pelo alarido que fazia um grupo de homens e mulheres enfurecidos, pouco além da minha janela. Notei que, entre eles, ia um homem amarrado e todo ensangüentado, sendo arrastado em direção ao poço da praça. O local há muito fora considerado imprestável pelo forte odor que exalava da água apodrecida."
Kauperman fez uma pequena pausa prosseguiu:
"Não sei porque, vesti-me às pressas e desci à rua, logo me misturando com a turba. E foi assim que fiquei sabendo tratar-se de Borak, um perigoso ladrão há muito procurado. Horrorizei-me quando soube que iam matá-lo, afogando-o no poço, sem qualquer julgamento. Aquilo angustiou-me de tal forma que por alguns momentos esqueci-me de seus crimes e só pensei naquele pobre diabo debatendo-se até a morte nas águas poluídas. Foi aí que, impensadamente, tomei uma atitude estranha, baseada numa velha lei da Ucrânia..."
- Que lei é essa? - quis saber John.
- Uma lei um tanto estranha - continuou Kauperman - e pela qual as pessoas acusadas de roubo podem se livrar da morte desde que surja alguém que se interesse em pagar um terço dos prejuízos causados pelo acusado. Mas o ladrão não fica inteiramente impune...
- Como assim? - perguntou Vanny:
Kauperman cofiou a barbicha e informou:
- O acusado tem a mão direita decepada e entregue ao seu benfeitor.
Limpando o suor da testa com as costas da mão; o professor prosseguiu:
- Um velho costume da região. Confesso que a penhora causou-me repulsa. Paguei o terço dos prejuízos exigido por lei... horrorizado, vi um golpe de facão fazer-lhe a mão direita saltar fora do pulso e rolar por terra, contorcendo-se, os dedos abrindo e fechando convulsamente, como se ainda guardassem o reflexo final dos nervos e tendões tentando fugir à dor.
- E depois, professor, que fizeram com a mão? — indagou John.
- Depois, pegaram-na com um pano sujo e deram-na. Ainda ouvi uma série de pragas contra mim. Pois todos desejavam vê-lo no fundo do poço.
Vanny esticou o pescoço para a frente e perguntou com ar de mofa:
- E o ladrão? Que é feito dele?
- Nunca mais o vi. Quando o soltaram, virou-se para mim e disse com uma voz estranha:
"Obrigado. Quando precisar de mim... virei em seu socorro."
- Muito interessante – disse Vanny. - Eu em seu lugar, escreveria esta história para uma revista de curiosidades.
John viu o professor franzir o cenho e rumar porta afora em direção aos seus aposentos. Tão logo Kauperman saiu, ele advertiu Vanny:
- Não deveria ter dito aquilo, Vanny. O professor não gosta de humor.
- Idiota é o que ele é, isso sim. Vive gastando sua fortuna nessas viagens enquanto nós ficamos aqui feitos ratos de laboratórios, examinando as peças que nos envia.
- Cale-se - tornou John. – Não gosto de ouvi-la falar dessa maneira. Ademais, você sabe muito bem que, quando ele morrer, nós seremos os únicos beneficiados... sua fortuna ficará para nós, a fim de podermos concluir a sua obra.
Vanny sorriu maliciosamente e Olhando a noite ir descendo, pensou:
"- E por quanto tempo ainda? Esse velho fóssil tem mais saúde do que dez touros juntos. Não! Terá que ser logo. Sim, será esta noite!"
E, deixando John envolvido com o trabalho, retirou secretamente um vidro de Manary, veneno fulminante, usado pelos mongóis, e saiu. Sabia que, uma hora depois de ministrá-lo no chá de Kauperman, não ficaria o menor vestígio.
Às dez da noite, Kauperman desceu. Como de hábito, cruzou a ante-sala e viu Vanny preparando-lhe o chá. Estava mal-humorado e não a cumprimentou. A moça acompanhou-lhe os passos com o olhar em esguelha e, no momento em que o professor atingiu o laboratório, ela despejou, de uma só vez, todo o conteúdo do vidro no bule de chá.
Em seguida, tomando a bandeja nas mãos, deu um, dois, três, quatro passos e parou horrorizada. O que via à sua frente fê-la perder completamente a voz. O grito ensaiado na garganta ficou petrificado e a boca escancarada somente o permitiu escapar quando o pescoço estrangulado tombou para um lado, arrastando consigo, para o chão, o corpo inerte e o bule derramado.
Quando Kauperman e John Harrison atingiram a ante-sala, encontraram-na já completamente sem vida. E uma rápida investigação permitiu-lhes deduzir claramente o que Vanny desejava fazer: matar Kauperman.
Na manhã seguinte, após o corpo da moça ter sido levado pela Polícia, John chamou o professor às pressas. Juntos rumaram para o laboratório e depararam com o vidro de formol onde antes se encontrava a mão de Borak... completamente vazio.
Um terrível pressentimento apossou-se do rapaz. Freneticamente, pegou as lâminas onde se encontravam as impressões digitais de Borak e comparou-as com as que foram encontradas pela Polícia na garganta de Vanny. E quando John, ao cabo de algum tempo, concluiu suas investigações, transfigurado de pavor, virou-se para Kauperman e disse com a voz tremula:
- Não há dúvida, professor: Borak retribui-lhe o favor; cumpriu a sua terrível promessa!
E só depois de muito procurarem, em vão, foi que John e o professor resolveram dar por encerrada a busca macabra. Compreenderam que a mão embalsamada de Borak sumira para sempre, deixando atrás de si um insondável e tenebroso mistério.
Fonte: Nostalgia do Terror
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