sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Arthur Jermyn


A vida é uma coisa terrível e do fundo por trás do que sabemos a seu respeito espreitam sugestões demoníacas de verdade que a tornam, de vez em quando, mil vezes mais terrível. A ciência, que já é opressiva com suas revelações chocantes, talvez venha a ser a exterminadora final de nossa espécie humana — se é que somos uma espécie aparte —, pois sua reserva de horrores inimagináveis jamais poderia ser suportada por cérebros humanos se fosse solta no mundo.

Se soubéssemos o que somos, deveríamos fazer como sir Arthur Jermyn, e Arthur Jermyn encharcou-se de petróleo e pôs fogo nas roupas certa noite. Ninguém colocou seus restos carbonizados numa urna, nem produziu um memorial em sua homenagem, pois encontraram alguns papéis e um certo objeto encaixotado que fizeram os homens desejar esquecer tudo. Alguns que o conheciam chegam a não admitir que ele tenha algum dia existido.

Arthur Jermyn saiu para o pântano e ateou fogo em si próprio depois de ver o objeto encaixotado que viera da África. Foi esse objeto e não a sua singular aparência pessoal que o levou a pôr fim em sua vida. Muitos não gostariam de viver se tivessem as feições peculiares de Arthur Jermyn, mas ele era um poeta e estudioso e não se importava com isso.

Tinha o aprendizado no sangue, pois seu bisavô, o baronete sir Robert Jermyn, havia sido um antropólogo de renome, enquanto seu tataravô, sir Wade Jermyn, fora um dos primeiros exploradores da região do Congo e havia escrito com erudição sobre suas tribos, animais e supostas antigüidades. Com efeito, o velho sir Wade mostrara um zelo intelectual que quase beirava a mania. Suas bizarras conjecturas sobre uma civilização congolesa branca e pré-histórica lhe valeram muito ridículo quando seu livro, Observação sobre as diversas partes da África foi publicado. Em 1765, esse ousado explorador foi internado num hospício de Huntingdon.

A loucura estava presente em todos os Jermyn, e as pessoas achavam ótimo que não houvessem muitos deles. A linhagem não gerou linhas secundárias e Arthur foi seu derradeiro representante. Se não fosse, sabe-se lá o que ele teria feito quando o objeto chegou. Os Jermyn nunca pareceram ter uma aparência muito normal — havia algo de errado, ainda que Arthur fosse o pior deles, mas os velhos retratos de família no Solar Jermyn mostravam um bom número de feições agradáveis antes da época de sir Wade.

A loucura havia começado com certeza com sir Wade, cujas histórias malucas sobre a África faziam a delícia e o terror de seus poucos amigos. Ela revelava-se em suas coleções de troféus e espécimes, de um tipo que pessoas normais não haveriam de juntar e preservar e aparecia nitidamente na clausura oriental em que mantinha sua esposa. Esta, segundo ele, era a filha de um comerciante português que havia encontrado na África e não apreciava os costumes ingleses. Ela o acompanhara quando ele voltara da segunda e mais longa de suas viagens, trazendo um filho bebê nascido na África, fora com ele na terceira e última e nunca mais retornara. Ninguém jamais a vira de perto, nem mesmo os criados, pois tinha um comportamento violento e singular.

Durante sua breve estada no Solar Jermyn, havia ocupado uma ala afastada onde era visitada apenas pelo marido, sir Wade era, de fato, muito peculiar na solicitude com a família, pois, quando retornara à África, não permitira que ninguém mais cuidasse de seu jovem filho afora uma negra abjeta da Guiné. Quando de seu retorno, depois da morte de Lady Jermyn, ele próprio assumira os cuidados gerais com o garoto.

Mas foram as conversas de sir Wade, especialmente depois de tomar uns goles, o principal motivo para os amigos o julgarem louco. Num período racionalista como o século dezoito, era um pouco imprudente uma pessoa instruída falar de visões terríveis e cenas estranhas sob o luar do Congo, de muralhas e pilares gigantescos de uma cidade perdida em ruínas e coberta de heras e de uma escada de pedra úmida, silenciosa, descendo interminavelmente até a escuridão de criptas abismais e catacumbas inconcebíveis.

Era especialmente imprudente delirar sobre criaturas vivas que poderiam assombrar esse suposto lugar, criaturas meio selvagens e meio urbanas, de uma ancestralidade profana — criaturas fabulosas que mesmo um Plínio descreveria ceticamente, coisas que poderiam ter surgido depois dos grandes macacos terem infestado a cidade mori¬bunda com suas muralhas e pilares, suas criptas e suas fabulosas esculturas.

Depois de voltar para casa pela última vez, sir Wade falava desses assuntos com extrema satisfação, sobretudo depois de seu terceiro copo no Knight’s Head, jactando-se do que havia encontrado na selva e de como havia habitado entre ruínas terríveis que só ele conhecia. Ele acabou falando de tal forma das criaturas vivas, que o internaram no hospício. Preso no quarto gradeado de Huntingdon, ele não se mostrou muito arrependido; sua mente funcionava de maneira curiosa.

Desde que o filho começara a deixar a infância, ele começou a gostar cada vez menos de seu lar, até que passou a temê-lo. O Knight’s Head ficara sendo seu quartel-general e, quando foi internado, chegou a manifestar certa gratidão, como se aquilo fosse para a sua prote-ção. Três anos depois, ele morreu.

Philip, o filho de Wade Jermyn, fora uma pessoa muito singular. Apesar da grande seme-lhança física com o pai, sua aparência e conduta eram, sob muitos aspectos, tão rudes, que todos o evitavam. Conquanto não houvesse herdado a loucura, como alguns temiam, era muito bronco e dado a breves lapsos de incontrolável violência. Era baixo, mas muito vigoroso, e tinha uma agilidade espantosa. Doze anos depois de conseguir seu título, casou-se com a filha de seu couteiro, de quem se dizia ter origem cigana, mas, antes do nascimento de seu filho, ele ingressou na Marinha como marujo, completando os motivos para a aversão universal que seus hábitos e seu casamento com uma pessoa de origem inferior haviam iniciado. Com o fim do conflito americano, soube-se que ele engajara-se como marinheiro de um navio mercante no comércio africano, adquirindo alguma reputação em proezas de força e escalada, mas que havia desaparecido durante uma noite em que seu navio estivera fundeado na costa do Congo.

No filho de sir Philip Jermyn, a reconhecida peculiaridade da família adquiriu um aspecto estranho e fatal. Alto e muito bonito, com uma curiosa espécie de graça oriental apesar de ligeiras desproporções, Robert Jermyn começou a vida como estudioso e pesquisador. Ele foi o primeiro a estudar cientificamente a enorme coleção de relíquias que seu avô louco trouxera da África e que tornara a família tão ilustre na etnologia quanto nas explorações.

Em 1815, sir Robert desposou uma filha do sétimo Visconde de Brightholme e foi depois abençoado com três filhos, o mais velho e o mais moço dos quais jamais foram vistos em público em virtude de deformidades físicas e mentais. Entristecido por esses infortúnios familiares, o cientista buscou alívio no trabalho e fez duas longas expedições ao interior da África.

Em 1849, seu segundo filho, Nevil, pessoa particularmente repulsiva que parecia combinar a rudeza de Philip Jermyn com a altivez dos Brightholmes, fugiu com uma dançarina de cabaré, mas foi perdoado quando retornou no ano seguinte. Ele voltou ao Solar Jermyn viúvo e com um filho bebê, Alfred, que um dia iria tornar-se o pai de Arthur Jermyn.

Amigos disseram que foi essa sucessão de sofrimentos que perturbaram a razão de sir Robert Jermyn, mas o motivo do desastre foi, provavelmente, algum elemento do folclore africano. O velho erudito vinha recolhendo lendas das tribos Onga perto do campo de explorações de seu avô e das suas próprias, esperando assim entender um pouco das histórias fantásticas de sir Wade sobre uma cidade perdida povoada por estranhas criaturas híbridas. Certa consistência nos curiosos papéis de seu ancestral sugeriam que a imaginação do louco poderia ter sido fomentada por mitos nativos.

Em 19 de outubro de 1852, o explorador Samuel Seaton visitou o Solar Jermyn levando consigo um manuscrito com anotações coligidas entre os Onga e certo de que algumas lendas sobre uma cidade cinzenta de macacos brancos governada por um deus branco poderiam ser valiosas para um etnólogo. Durante sua conversa, é provável que ele tenha fornecido muitos detalhes adicionais cuja natureza jamais será conhecida, pois uma sucessão de tragédias terríveis começou a se formar.

Quando sir Robert Jermyn saiu da biblioteca, deixou para trás o corpo estrangulado do explorador e, antes que pudesse ser contido, havia dado fim a todos os três filhos, os dois que nunca mais haviam sido vistos e o que havia fugido. Nevil Jermyn morreu defendendo, com sucesso, seu próprio filho de dois anos, que aparentemente havia sido incluído nos planos assassinos do velho enlouquecido. O próprio sir Robert, depois de repetidas tentativas de suicídio e de uma obstinada recusa em dizer o que quer que fosse, morreu de apoplexia no segundo ano de seu confinamento.

Sir Alfred Jermyn tornou-se baronete antes de seu quarto aniversário, mas seus gostos jamais casaram com o título. Aos vinte, juntou-se a um grupo de artistas mambembes e aos trinta e seis havia abandonado mulher e filho para excursionar com um circo itinerante americano. Seu fim foi abjeto. Entre os animais exibidos na excursão, havia um enorme gorila macho de cor mais clara do que a média, uma fera surpreendentemente dócil, muito popular entre os artistas. Alfred Jermyn era muito fascinado por aquele gorila e em muitas ocasiões os dois ficavam observando-se com vagar por entre as grades.

Um dia, Jermyn pediu e lhe deram permissão para treinar o animal, espantando o público e seus colegas artistas com o êxito de seus esforços. Certa manhã, em Chicago, quando o gorila e Alfred Jermyn estavam ensaiando uma luta de boxe por demais engenhosa, o primeiro soltou um golpe com força maior que o normal, ferindo o corpo e a dignidade do aprendiz de domador.

Do que se seguiu, membros de “O Maior Espetáculo da Terra” não gostam de falar. Eles não esperavam ouvir sir Alfred Jermyn emitir um grito desumano de arrepiar, nem de o ver agarrar seu desajeitado adversário com as duas mãos, atirá-lo ao chão da jaula e morder-lhe perversamente a garganta peluda. O gorila ficou desguarnecido, mas não por muito tempo, e, antes que o domador normal pudesse fazer alguma coisa, o corpo que pertencera ao baronete ficara irreconhecível.

Arthur Jermyn era o filho de sir Alfred Jermyn com uma cantora de cabaré de origem desconhecida. Quando o marido e pai abandonou a família, a mãe levou a criança ao Solar Jermyn, onde não restara ninguém para criar objeções à sua permanência. Ela tinha algumas noções de qual deveria ser o comportamento de um aristocrata e cuidou que o filho recebesse a melhor educação que seus parcos recursos per¬mitiam. Os recursos da família eram, então, muito escassos, e o solar Jermyn estava num estado de abandono lamentável, mas o jovem Arthur amava a velha construção com tudo que ela abrigava. Poeta e sonhador, ele era diferente de todos os outros Jermyn que ali viveram.

Algumas famílias vizinhas, que tinham ouvido histórias sobre a esposa portuguesa nunca vista do velho sir Wade, diziam que seu sangue latino devia estar-se revelando, mas a maioria das pessoas limitava-se a zombar de sua sensibilidade à beleza, atribuindo-a à mãe cantora, socialmente aviltada.

A delicadeza poética de Arthur Jermyn era ainda mais notável devido à rudeza de sua aparência pessoal. A maioria dos Jermyn possuíra uma aparência sutilmente esquisita e repulsiva, mas o caso de Arthur era chocante. E difícil dizer com exatidão com o que ele parecia-se, mas seu semblante, o talhe de seu rosto e a extensão de seus braços provocavam um arrepio de repulsa nos que o viam pela primeira vez.

A mente e o caráter de Arthur Jermyn compensavam, porém, seu aspecto. Prendado e instruído, ele obtivera as mais altas honrarias em Oxford e parecia destinado a resgatar o prestígio intelectual de sua família. Conquanto seu temperamento fosse mais poético do que científico, pretendia prosseguir no trabalho de seus antepassados com etnologia e antigüidades africanas, utilizando a coleção maravilhosa e exótica de sir Wade.

Com seu espírito fantasista, ele meditava com muita freqüência na civilização pré-histórica em que o explorador enlouquecido acreditara tão explicitamente, costurando, história a história, os elementos sobre a cidade silenciosa na selva mencionada nas notas e tópicos mais alucinados deste último. Quanto às nebulosas afirmações sobre uma raça de selvagens híbridos indescritível e insuspeita, ele tinha um sentimento peculiar combinando terror e atração, especulando sobre o fundamento possível daquela fantasia e tentando obter luz nos dados mais recentes reunidos por seu bisavô e por Samuel Seaton junto os Onga.

Em 1911, depois que sua mãe morreu, sir Arthur Jermyn decidiu levar suas investigações o mais longe possível. Vendendo parte da propriedade para conseguir o dinheiro necessário, montou uma expedição e navegou para o Congo. Tendo conseguido um grupo de guias junto às autoridades belgas, passou um ano na região dos Onga e dos Kaliri recolhendo dados que superavam suas maiores expectativas.

Entre os Kaliri havia um chefe idoso chamado Mwanu que possuía não só uma memória altamente retentiva, mas um grau singular de percepção e interesse nas lendas antigas. Esse ancião confirmou cada história que Jermyn ouvira, acrescentando seu próprio relato sobre a cidade de pedra e os macacos brancos tal como lhe havia sido contado.

Segundo Mwanu, a cidade cinzenta e as criaturas híbridas já não existiam, tendo sido aniquiladas pelos belicosos N’bangus havia muitos anos. Essa tribo, depois de destruir a maioria dos edifícios e matar as criaturas vivas, levara embora a deusa empalhada que motivara a sua busca, a deusa-macaco branca que os estranhos seres adoravam e que, segundo a tradição do Congo, teria a forma de alguém que havia reinado como princesa entre aquelas criaturas. Mwanu não tinha idéia de como deviam ter sido exatamente as criaturas brancas com forma de macaco, mas achava que haviam sido elas as construtoras da cidade em ruínas. Jermyn não pôde tirar nenhuma conclusão, mas, insistindo nas perguntas, obteve uma lenda muito pitoresca sobre a deusa empalhada.

A princesa-macaco, dizia-se, tornara-se a consorte de um grande deus branco vindo do Ocidente. Durante muito tempo, eles reinaram juntos sobre a cidade, mas, quando tiveram um filho, os três foram-se. Mais tarde, o deus e a princesa retornaram, e, quando a princesa morreu, seu divino esposo fez mumificar seu corpo e o conservou como relíquia numa enorme casa de pedra, onde ele era adorado. Depois, ele partiu sozinho. Nesse ponto, a lenda parecia ter três variantes. Segundo um dos relatos, nada mais acontecera, salvo que a deusa empalhada tornara-se um símbolo de supremacia para todas as tribos que a viessem possuir. Esse fora o motivo para os N’bangus a terem levado.

Um segundo relato falava da volta do deus e de sua morte aos pés da esposa santificada. Um terceiro falava da volta do filho, transformado em homem adulto — ora um macaco adulto, ora um deus adulto, conforme o caso — sem conhecimento de sua identidade. Os imaginativos negros haviam extraído, com certeza, o máximo dos fatos que poderiam existir por trás da extravagante fabulação.

Arthur Jermyn já não tinha dúvidas sobre a existência real da cidade no meio da selva descrita pelo velho sir Wade e não se espantou muito quando, no início de 1912, encontrou o que restara dela. Seu tamanho devia ter sido exagerado, mas as pedras que jaziam espalhadas pelo local comprovavam que não havia sido uma simples aldeia de negros.

Infelizmente não lhe foi possível encontrar nenhuma escultura e o pequeno porte da expedição impediu as operações de limpeza de uma das passagens visíveis que pareciam descer para o sistema de galerias que sir Wade mencionara.

Os macacos brancos e a deusa empalhada foram discutidos com todos os chefes nativos da região, mas coube a um europeu aprimorar os dados proporcionados pelo velho Mwanu. M. Verhaeren, agente belga de um entreposto comercial do Congo, acreditava que poderia não só localizar, mas obter a deusa mumificada, da qual ouvira falar vagamente, pois os antes poderosos N’bangus eram agora servos submissos do governo do rei Albert e, com um pouco de persuasão, poderiam ser induzidos a se desfazer da terrível divindade que haviam pilhado.

Quando Jermyn navegou para a Inglaterra, portanto, foi exultante com a possibilidade de, dentro de alguns meses, receber uma relíquia etnológica inestimável confirmando a mais excêntrica das narrativas de seu tataravô — isto é, a mais excêntrica que ele jamais ouvira.

Os camponeses das vizinhanças do Solar Jermyn talvez houvessem escutado histórias mais extraordinárias transmitidas por antepassados que haviam escutado sir Wade nas mesas do Knight’s Head.

Arthur Jermyn esperou pacientemente pela caixa de M. Verhaeren, entrementes estudando com maior diligência ainda os manuscritos deixados por seu antepassado demente. Ele começou a se achar muito parecido com sir Wade e a procurar relíquias da vida pessoal dele na Inglaterra, bem como de suas explorações africanas.

Conseguiu numerosos relatos orais sobre a esposa misteriosa e reclusa, mas não havia sobrado nenhuma relíquia tangível dela no Solar Jermyn. Arthur ficou pensando que circunstâncias teriam provocado ou permitido essa completa ausência e concluiu que a loucura do marido havia sido o principal motivo.

Dizia-se que sua tataravó, recordava ele, teria sido a filha de um comerciante português na África. Sua herança prática e seu conhecimento superficial do Continente Negro com certeza a teriam levado a zombar das histórias de sir Wade sobre o interior africano, coisa que um homem como ele dificilmente perdoaria. Ela teria morrido na África, talvez arrastada até lá por um marido determinado a provar o que havia relatado. Mas, enquanto indulgia nessas reflexões, Jermyn não podia deixar de sorrir com sua inutilidade um século e meio depois da morte desses dois extraordi¬nários ancestrais.

Em junho de 1913, chegou-lhe uma carta de M. Verhaeren contando sobre a descoberta da deusa empalhada. Era, asseverava o belga, uma peça das mais extraordinárias, muito além da capacidade de classificação de um leigo. Se era humana ou símia, só um cientista poderia deter-minar, e o processo de determinação seria ainda mais dificultado por seu estado imperfeito.

O tempo e o clima do Congo não são complacentes com múmias, em especial quando sua preparação era tão amadorística como parecia ser o caso. Haviam encontrado ao redor do pescoço da criatura um cordão de ouro sustentando um medalhão vazio sobre o qual havia desenhos armoriais, com certeza uma lembrança de algum infeliz viajante tirado pelos N’bangus e pendurado na deusa como amuleto.

Comentando o perfil do rosto da múmia, M. Verhaeren sugeriu uma comparação esquisita, ou melhor, expressou uma sugestão jocosa de como ele chocaria seu correspondente, mas estava muito mais interessado em questões científicas para gastar muitas palavras com tais leviandades. A deusa empalhada, escreveu, chegaria devidamente embalada cerca de um mês depois do recebimento da carta.

O objeto encaixotado foi entregue no Solar Jermyn na tarde de 3 de agosto de 1913, sendo na hora transportado para o grande salão que abrigava a coleção de espécimes africanos tal como havia sido disposta por sir Robert e Arthur. O que se seguiu pode ser mais bem coligido a partir dos relatos de criados e dos objetos e papéis examinados depois.

Dos muitos relatos, o do velho Soames, mordomo da família, é o mais amplo e coerente. Segundo esse homem digno de confiança, sir Arthur Jermyn fez todos saírem do salão antes de abrir a caixa, embo¬ra o som distante de martelo e formão indicasse que ele não retardara a operação. Durante algum tempo, nada se ouviu.

Soames não soube calcular com exatidão, mas foi decerto menos de um quarto de hora depois que o pavoroso grito, inquestionavelmente com a voz de Jermyn, foi ouvido. Logo depois, Jermyn irrompeu do salão correndo freneticamente para a frente da casa como se estivesse sendo perseguido por algum terrível inimigo. A expressão de seu rosto, um rosto já horrível o bastante quando em repouso, era indescritível. Quando se aproximou da porta da frente, ele pareceu lembrar-se de algo, interrompeu a fuga, voltou e desapareceu na escada para o porão.

Os criados, de todo atônitos, ficaram observando o alto da escada, mas seu amo não voltava. Um cheiro de petróleo foi tudo que subiu das regiões inferiores. Depois de escurecer, ouviram um ruído na porta do porão que dava para o quintal e um cavalariço viu Arthur Jermyn, reluzindo de petróleo da cabeça aos pés e exalando o cheiro deste líquido, esgueirar-se furtivamente para fora e desaparecer no pântano escuro que rodeava a casa. Depois, num paroxismo de horror supremo, todos viram o fim. Uma centelha brilhou no pântano, uma chama subiu e uma coluna de fogo humano ergueu-se para o céu. A casa de Jermyn deixara de existir.

O motivo para os restos carbonizados de Arthur Jermyn não terem sido recolhidos e enterrados encontra-se no que foi achado mais tarde, em especial na coisa dentro da caixa. A deusa empalhada era uma visão repugnante, res-secada e corroída, mas era claramente um macaco branco mumificado de alguma espécie desconhecida, menos peludo do que qualquer variedade registrada e muito mais próximo da humanidade — estarrecedoramente mais próximo.

Uma descrição detalhada seria muito desagradável, mas dois aspectos em particular merecem ser revelados, pois combinam com certas anotações revoltantes das expedições africanas de sir Wade e as lendas congolesas do deus branco e da princesa-macaco.

Os dois aspectos em questão são os seguintes: as armas no medalhão de ouro pendurado no pescoço da criatura eram as armas dos Jermyn, e a sugestão jocosa de M. Verhaeren sobre certa semelhança relacionada com o rosto encarquilhado aplicava-se com vivido, pavoroso e sobrenatural horror a nada menos que o sensível Arthur Jermyn, tataraneto de sir Wade Jermyn e uma esposa desconhecida.

Membros do Royal Anthropological Institute queimaram a coisa e atiraram o medalhão num poço, e alguns deles chegam a não admitir que Arthur Jermyn tenha existido algum dia.

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