segunda-feira, 17 de novembro de 2008

O Coração Delator

É verdade. Tenho sido e sou nervoso, muito nervoso, terrivelmente nervoso. Mas, por que ireis dizer que sou louco? A enfermidade me aguçou os sentidos, não os destruiu, não os entorpeceu. Era penetrante, acima de tudo, o sentido da audição. Eu ouvia todas as coisas, no céu e na terra. Muitas coisas do inferno eu ouvia. Como, então, sou louco? Prestai atenção. E observai quão lucidamente, quão calmamente vos posso contar toda a história.

É impossível dizer como a idéia me penetrou primeiro no cérebro; uma vez concebida, porém, ela me perseguiu dia e noite. Não havia motivo. Não havia cólera. Eu gostava do velho. Ele nunca me fizera mal. Nunca me insultara. Eu não desejava seu ouro.

Penso que era o olhar dele. Sim, era isso. Um de seus olhos se parecia com o de um abutre.... um olho de cor azul pálida, que sofria de catarata. Meu sangue se enregelava, sempre que ele caía sobre mim; e assim, a pouco e pouco, bem lentamente, fui-me decidindo a tirar a vida do velho e desse modo libertar-me daquele olho para sempre.

Ora, aí é que está o problema. Imaginais que sou louco. Os loucos nada sabem. Deveríeis, porem, ter-me visto. Deveríeis ter visto como precedi cautamente, com que prudência, com que previsão, com que dissimulação, lancei mãos à obra.

Eu nunca fora mais bondoso para com o velho que durante a semana inteira, antes de matá-lo. E todas as noites, por volta da meia-noite, eu girava o trinco da porta de seu quarto e abria... Oh! Bem devagarinho. E depois, quando a abertura era suficiente para conter minha cabeça, eu introduzia uma lanterna com tampa, toda velada, bem velada, de modo que nenhuma luz se projetasse para fora, e, em seguida, enfiava a cabeça. Oh! teríeis rido ao ver como a enfiava habilmente. Movia-a lentamente, muito, muito lentamente, a fim de não perturbar o sono do velho. Levava uma hora para colocar a cabeça inteira além da abertura, até poder vê-lo deitado na cama. Ah! Um louco seria precavido assim? E depois, quando minha cabeça estava bem dentro do quarto, eu abria a tampa da lanterna cautelosamente... Oh! bem cautelosamente!... cautelosamente... porque a dobradiça rangia... abria-a só até permitir que apenas um débil raio de luz caísse sobre o olho de abutre. E isto eu fiz durante sete longas noites... sempre precisamente à meia-noite... e sempre encontrei o olho fechado. Assim, era impossível fazer a minha tarefa, porque não era o velho que me perturbava, mas o seu olho diabólico. E todas as manhãs, quando o dia raiava, eu penetrava atrevidamente no quarto e falava-lhe sem temor, chamando-o pelo nome com ternura e perguntando como havia passado a noite. Por aí vedes que ele precisaria ser um velho muito perspicaz, para suspeitar que todas noites, justamente à meia-noite, eu o espreitava, enquanto dormia.

Na oitava noite, fui mais cauteloso do que de habito, ao abrir a porta. O ponteiro dos minutos de um relógio mover-se-ia mais rapidamente que meus dedos. Jamais, antes daquela noite, sentira eu tanto a extensão de meus próprios poderes, de minha sagacidade. Mal conseguia conter meus sentimentos de triunfo. Pensar que ali estava eu, a abrir a porta, pouco a pouco, e que ele nem sequer sonhava com os meus atos ou pensamentos secretos... Ri com gosto, entre os dentes, a essa idéia... E talvez ele me tivesse ouvido, porque se moveu de súbito na cama, como se assustado. Pensai talvez que recuei? Não! O quarto dele estava escuro como piche, espesso de sombra, pois os postigos se achavam hermeticamente fechados, por medo dos ladrões. E eu sabia, assim, que ele não podia ver a abertura da porta. Continuei a avançar. Cada vez mais. Cada vez mais.

Já estava com a cabeça dentro do quarto a ponto de abrir a lanterna, quando meu polegar deslizou sobre o fecho de lata e o velho saltou da cama, gritando: "Quem está ai?"

Fiquei completamente silencioso e nada disse. Durante uma hora inteira, não movi um músculo. E, por todo esse tempo, não o ouvi deitar-se de novo. Ele ainda estava sentado na cama à escuta. Justamente como eu fizera, noite após noite, ouvindo a ronda da morte próxima.

Depois, ouvi um leve gemido e notei que era o gemido do terror mortal. Não era um gemido de dor ou de pesar, oh, não. Era o som grave e sufocado que se ergue do fundo da alma, quando sobrecarregada de medo. Bem conhecia esse som. Muitas noites, ao soar a meia-noite, quando o mundo inteiro dormia, ele irrompia do meu próprio peito, aguçando com seu eco espantoso, os terrores que me aturdiam. Disse que bem o conhecia. Conheci também o que o velho sentia e tive pena dele, embora abafasse um riso no coração. Eu sabia que ele ficara acordado desde o primeiro leve rumor, quando se voltara para a cama. Daí por diante, seus temores foram crescendo. Tentara imaginá-los sem motivo, mas não fora possível. Dissera a si mesmo: "É só o vento na chaminé", ou "É só um rato andando pelo chão", ouvi apenas um grito que trilou um instante só. Sim, ele estivera tentando animar-se com essas suposições, mas tudo fora em vão. Tudo em vão, porque a morte, ao aproximar-se dele, projetara sua sombra negra para a frente, envolvendo nela a vítima. E era a influencia tétrica dessa sombra não percebida que o levava a sentir - embora não visse nem ouvisse - a sentir a presença de minha cabeça, dentro do quarto.

Depois de esperar longo tempo, com muita paciência, sem ouvi-lo deitar-se, resolvi abrir um pouco, muito, muito pouco a tampa da lanterna. Abri-a, podeis imaginar quão furtivamente, até que, por fim, um raio de luz apenas, tênue como o fio de uma teia de aranha, passou pela fenda e caiu sobre o olho de abutre.

Ele estava aberto. Todo, plenamente aberto. E, ao contemplá-lo, minha fúria cresceu-o. Vi-o com perfeita clareza. Todo de azul desbotado, com uma horrível película a cobri-lo, o que me enregelava até à medula dos ossos. Mas não podia ver nada mais da face, ou do corpo do velho, pois dirigira a luz, como por instinto, sobre o maldito lugar.

Ora, não vos disse que apenas é super-acuidade dos sentidos, aquilo que erradamente julgais loucura? Repito, pois, que chegou aos meus ouvidos, um som baixo, monótono, rápido como o de um relógio, quando abafado em algodão. Igualmente eu bem sabia que som era aquele. Era o bater do coração do velho. Ele me aumentava a fúria, como o bater de um tambor estimula a coragem do soldado.

Ainda aí, porém, refreei-me e fiquei quieto. Tentei manter tão fixamente quanto pude a réstia de luz sobre o olho do velho. Entretanto, o infernal tan-tan do coração aumentava. A cada instante ficava mais alto, mais rápido, mais alto, mais rápido. O terror do velho deve ter sido extremo. Cada vez mais alto, repito, a cada momento. Prestais bem atenção? Disse-vos que sou nervoso: Sou-o. E então, àquela hora morta da noite, tão estranho ruído excitou em mim um terror incontrolável. Contudo, por alguns minutos mais, dominei-me e fiquei quieto. Mas o bater era cada vez mais alto. Julguei que o coração ia rebentar. E, depois, nova angústia me aferrou: o rumor poderia ser ouvido por um vizinho. A hora do velho tinha chegado. Com um alto berro, escancarei a lanterna e pulei para dentro do quarto. Ele guinchou mais uma vez... uma vez só. Num instante, arrastei-o para o soalho e virei a pesada cama sobre ele. Então sorri alegremente, por ver a façanha realizada. Mas, durante muitos minutos, o coração continuou a bater, com som cavo e surdo. Isto, porém, não me vexava. Não seria ouvido através da parede. Afinal, cessou. O velho estava morto. Removi a cama e examinei o cadáver. Sim, era uma pedra, uma pedra morta. Coloquei minha mão sobre o coração e ali a mantive durante muitos minutos. Não havia pulsação. Estava petrificado. Seu olho não mais me perturbaria.

Se ainda pensais que sou louco, não mais o pensareis, quando eu descrever as sábias precauções que tomei, para ocultar o cadáver. A noite avançava e eu trabalhava apressadamente, porém, em silêncio. Em primeiro lugar, esquartejei o corpo. Cortei-lhe a cabeça, os braços e as pernas.

Arranquei depois três pranchas do soalho do quarto e coloquei tudo entre os vãos. Depois recoloquei as tabuas, com tamanha habilidade e perfeição, que nenhum olhar humano, nem mesmo o DELE, poderia distinguir qualquer coisa suspeita. Nada havia a lavar, nem mancha de espécie alguma, nem marca de sangue. Fora demasiado prudente no evitá-las. Uma tina tinha recolhido tudo... ah! ah! ah!

Terminadas todas estas tarefas, eram já quatro horas. Mas ainda estava escuro, como se fosse meia-noite. Quando o sino soou a hora, bateram à porta da rua. Desci a abri-la, de coração ligeiro... pois que tinha eu agora a temer? Entraram três homens, que se apresentaram, com perfeita mansidão, como soldados da polícia. Fora ouvido um grito por um vizinho, durante a noite. Despertara-se a suspeita de um crime. Tinha-se formulado uma denuncia à polícia e eles, soldados, tinham sido mandados para investigar.

Sorri... pois que tinha eu a temer? Dei as boas vindas aos cavalheiros. O grito, disse eu, fora meu mesmo, em sonhos. O velho, relatei, estava ausente, no interior. Levei meus visitantes a percorrer toda a casa. Pedi-lhes que dessem uma busca... COMPLETA. Conduzi-os, afinal, ao quarto dele. Mostrei-lhes suas riquezas, em segurança, intactas. No entusiasmo de minha confiança, trouxe cadeiras para o quarto e mostrei desejos de que eles ficassem ali, para descansar de suas fadigas, enquanto eu mesmo, na desenfreada audácia de meu perfeito triunfo, colocava minha própria cadeira, precisamente sobre o lugar onde repousava o cadáver da vítima.

Os soldados ficaram satisfeitos. Minhas maneiras os haviam convencido. Sentia-me singularmente à vontade. Sentaram-se e, enquanto eu respondia cordialmente, conversaram coisas familiares. Mas, dentro em pouco, senti que ia empalidecendo e desejei que eles se retirassem. Minha cabeça doía e parecia-me ouvir zumbidos nos ouvidos. Eles, porém, continuavam sentados e continuavam a conversar. O zumbido tornou-se mais distinto. Continuou e tornou-se ainda mais distinto. Eu falava mais, para dominar a situação. Ela, porém, continuava e aumentava sua perceptibilidade, até que, afinal, descobri que o barulho não era dentro de meus ouvidos.

É claro que, então, a minha palidez aumentou sobremaneira. Mas eu falava ainda mais fluentemente e em tom de voz muito elevado. Não obstante, o som se avolumava... E que podia eu fazer? Era um som grave, monótono, rápido... muito semelhante ao de um relógio envolto em algodão. Respirava com dificuldade... E, no entanto, os soldados não o ouviam. Falei mais depressa ainda, com mais veemência. Mas o som aumentava constantemente. Levantei-me e fiz perguntas a respeito de ninharias, em tom bastante elevado e com violenta gesticulação, mas o som constantemente aumentava. Oh! Deus! Que poderia eu fazer? Espumei. Enraiveci-me... Praguejei. Fiz girar a cadeira, sobre a qual estivera sentado, e arrastei-a sobre as tábuas, mas o barulho se elevava acima de tudo e continuamente aumentava. Tornou-se mais alto... mais alto... mais alto. E os homens continuavam ainda a passear, satisfeitos, e sorriam. Seria possível que eles não ouvissem? Deus Todo Poderoso!... Não, não! Eles suspeitavam!... Eles sabiam!... Estavam zombando do meu horror!...

Isto pensava eu, e ainda penso.

Outra coisa qualquer porém, era melhor que essa agonia. Qualquer coisa era mais tolerável que essa irrisão. Sentia que devia gritar, ou morrer!... E agora... de novo!... Escutai... Mais alto! Mais alto! Mais alto! Mais alto!...

- Vilões - trovejei - não finjam mais. Confesso o crime. Arranquem as pranchas!... aqui, aqui!... Ouçam o batido do seu horrendo coração.


por Edgar Allan Poe

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