quarta-feira, 9 de maio de 2012

O monstro de praia Vicentina

Ipupiara
As formas espantosas dos animais antediluvianos entrevistas pelos homens pré-históricos nas cavernas geladas ou as suas ossadas imensas encontradas nos pântanos causaram profunda sensação que, transmitida através das gerações, deu, sem dúvida, origem a muitas das lendas de bestas híbridas e horrendas. E todos os povos primitivos misturaram as formas vivas da água e da terra nessa produção duma verdadeira fauna de pesadelo, que velhos livros nos descrevem e antigos documentos iconográficos nos apresentam pintados ou esculpidos.

Os chineses criam no grande dragão Tatsmaki. Os hindus na imensa tartaruga Kusmaradja, na fabulosa serpente Midgard, no bicho Saza, de cabeça de cobra, no Çafir, de bico de águia e corpo de cão, na Çaga, de cara de milhafre e cauda de flor. Os árabes himiaritas e nabateus no pássaro Roca e nas aves Homai. Os cafres na serpente Manika, que bóia no mar como a dos escandinavos. Os esquimós no Tupilek, que tem milhões de pés, de olhos e de dentes. Os finlandeses no misterioso Herlihanem, que envenena o ferro. Os polinésios no homem-porco ou porco-homem Tamampuá.

A lista é longa, variada e apavorante. A ela concorrem os assírios com o sinistro Lahmu, nascido da mistura de água doce e salgada, com homens-escorpiões, os touros-alados, anjos-gafanhotos e deuses-peixes. Os gregos com centauros, dragões, hidras, Quimera, Minotauro, górgonas, sereias e o Campé, morto por Dionísio, que revolvia campos, devorava povos e arrasava cidades.

Os egípcios com a Esfinge, a Fênix e os deuses chacais, cinocéfalos ou gaviões. Os japoneses com o Baku, que devora os sonhos, e o Raiboku, que ataca o raio e cai despedaçado em chuva de pedrinhas pretas. Os cingaleses com o Daity-Mura de cinco cabeças. Os judeus com o pavoroso peixe Leviatã e o Hud-hud, pássaro de ouro que conversava com Salomão. Os africanos com o Kamapa, tão grande que duma extremidade não se vê a outra, e o Seedinevé, que engole aldeias inteiras. Os navegadores antigos com o Kraken, polvo gigante12 que sugava navios e o peixe-bispo, que abençoava os náufragos na hora da morte.

Os apocalipses, os volucrários, os fisiólogos, os bestiários, as moralizações e os espelhos naturais, nomes dados, geralmente, na Idade Média, a obras que traziam notícia ou figura desses bicharocos tremendos, enumeravam monstros de arrepiar: Capricervos, Caprimolgos, Capricórnios e Tragelafos, mestiços de bodes, veados e serpes; Cepus, mescla de pantera, gazela e leão; Sarcófagos, touros carnívoros; Crocotas, lobos e cães ao mesmo tempo; Dpsades, Anfisbenas, Acôntias, Áspides, Cerastas, Fisalos, Ceprestas, Basiliscos, Cítalos, Pancadas, Kesiduros, Enhídrios, Ascalábios, Ptíades, Anerudutes, Sanglos, Rútelos, Estifos, Filolópios, Céncrinos, Amolotes, Heláganas, Atélabos, Cicriodes, Selsiros, Onocrócalos e Coquátris, espantosa série de répteis monstruosos, alguns que até zurravam como jumento.

A fantasia humana não teve limite na criação de tanta monstruosidade. Encontramos no estudo das fábulas antigas, a cada passo, as bestas apocalípticas: Hipocampos, hipogrifos, hipocervos, grifos, guivras, oquilis, unicórnios, rafos, tarandos, salamandras, catopléias, cinamolgos, lumerpas, bonasios, pastinacas, masticoras, senadios, mirags, saduzags e manhotes. Na hagiografia cristã os animais fabulosos aparecem ao lado dos santos: O dragão Cauquemar lanceado por São Jorge, a Tarasca aos pés de Santa Marta, a baleia Fisetério conduzindo São Brandão, o lobo voraz de Gúbio amansado por São Francisco de Assis e a gárgula dominada por São Romano.

Algumas dessas criações híbridas representam verdadeiros símbolos. O que é o Falmante, leopardo que estourava de gritar sem necessidade, senão a representação figurada de certos indivíduos? O que é o Mirmecóleo (Mimercoleão), leão na frente e formiga atrás, senão o emblema dos fracalhões, que roncam, aparentando força que não possuem? O que é o Presteros, cujo contato tornava imbecil, senão o retrato de certas pessoas e de certas épocas que espalham a imbecilidade e a estupidez?

Entre os portugueses também correu, quando revolviam mundos e mares na sede de aventura, a história dum desses bichos apavorantes. A contou Fernão Mendes Pinto em sua Peregrinação: Era avistado nos mares misteriosos da Indochina e se chamava Caquesseitão. Tinha corpo gigantesco, carregado de compridos e terríveis espinhos, e agitava à flor das ondas um longo rabo como de lagarto.

Nosso Brasil, em seu amanhecer, possuía um bicharoco desses, muito digno de se comparar ao Caquessitão de Fernão Mendes Pinto e a quaisquer dos outros aqui anteriormente enumerados. Na penumbra das primeiras idades de todos os povos sempre se agitam formas larvares. Não podíamos escapar à regra geral. A espantosa notícia nos foi dada por dois graves e sisudos historiadores. Um forrado de saber teológico, frei Vicente do Salvador, o outro forrado de saber gramatical, Pero de Magalhães Gândavo.

Escreve o primeiro, textualmente, no capítulo 10 de sua História do Brasil: Na capitania de São Vicente, na era de 1564, numa noite saiu à praia um monstro marinho, o qual, visto por um mancebo chamado Baltasar Ferreira, filho do capitão, que se foi a ele com uma espada e o peixe, se levantando direito, como um homem, sobre as barbatanas do rabo, deu no mancebo uma estocada na barriga com a qual o derrubou e, se tornando a levantar, com a boca aberta pra o tragar, lhe deu um altabaixo15 na cabeça com o que o atordoou. Logo acudiram alguns escravos seus que o acabaram de o matar, ficando o mancebo desmaiado e quase morto, depois de haver tido tanto ânimo. Era este monstruoso peixe de 15 palmos de comprido [3,3m], não tinha escama senão pele, como se verá na figura seguinte.

Apesar desse se verá na figura seguinte, nenhum desenho do monstro acompanhava o manuscrito de frade custódio e não nos dá o nome do fabuloso animal marinho. Encontraremos, tanto esse nome como a estampa em que vem retratado, em História da província de Santa Cruz, de Pero de Magalhães Gândavo, edição de 1575, a primeira, 11 anos posterior ao aparecimento da besta, que foi em 1564.

Gândavo assim a descreveu: Era 15 palmos de comprido e semeado de cabelo no corpo. No focinho tinha cerdas muito grandes, como bigodes. Os índios da terra o chamam, em sua língua, Hipupiara,16 que quer dizer demônio dágua. Alguns como este já se viram nestas partes mas se acham raramente. E assim também deve haver outros muitos monstros, de diversos pareceres, que no abismo desse largo e espantoso mar se escondem...

Ao lado dessa descrição, a estampa do monstro sendo atacado a espada por Baltasar Ferreira, na praia de São Vicente: Hórrido aspecto antropomorfo e zoomorfo ao mesmo tempo. Decerto era essa mesma figura que frei Vicente do Salvador esqueceu de incluir em seu manuscrito, depois da haver citado. Nenhum outro documento iconográfico se conhece sobre ele em nossa história.

O rapaz que se diz ter atacado e matado a aterradora Hipupiara, segundo conta Pero de Magalhães Gândavo no capítulo 11 de sua obra já citada, de nome Baltasar Ferreira, era filho do capitão Jorge Ferreira, um dos companheiros de Martim Afonso de Souza na fundação de São Vicente. Se casara com a mameluca Joana, filha do misterioso taciturno e lendário João Ramalho, genro de Tibiriçá e um dos fundadores de São Paulo. Se encontra essa filiação em Nobiliarquia paulistana de Pedro Triques. Conta Hans Staden que um filho do mesmo Jorge Ferreira, quando este era capitão-mor de São Vicente, em 1556, fora morto e devorado a sua vista pelos índios. Não se sabe se era filho natural ou legitimo. Todavia não podia ser Baltasar Ferreira, pois este matou a Hipupiara em 1564, como depõem os historiadores a quem recorremos.

Como se vê, o matador do monstro marinho aparecido em São Vicente teve existência real e não é crível que a lenda do próprio monstro não se estribe num fato verdadeiro. As lendas são geralmente a fumaça ou as cinzas quentes da fogueira da história. Procurando uma explicação aceitável à Hipupiara, uma nota na introdução do terceiro volume da monumental História da colonização portuguesa do Brasil, aventa o seguinte: Se trata, muito provavelmente, dum exemplar do lamantino da América, vulgarmente conhecido por lobo-marinho ou leão-marinho, habitante da região antártica.

Difícil é se encontrar em tão reduzidas frases tantas cincadas em zoologia. O Lamantino, cetáceo herbívoro e fluvial, é um manatídeo. O da Flórida e do norte da América Meridional, que se chama, na Amazônia, peixe-boi, é o Manatus latirostris; o do sul do Brasil é o Manatus inunguis. O leão-marinho habita o oceano e não os rios como o peixe-boi. É uma otária, sendo que a espécie antártica se classifica como Otaria jubata ou cabeluda. Gândavo descreve a Hipupiara como semeada de cabelo.

Ora, nossos índios conheciam perfeitamente o Lamantino ou peixe-boi e não o tomariam por um bicho aterrador e fora do comum. Além disso, o episódio da Hipupiara se passou na costa do mar, onde os manatídeos não freqüentam. Quando muito seu aparecimento seria possível num estuário, com água ao menos salobra, o que não é o caso da praia de São Vicente. Assim, pra explicarmos racionalmente a presença daquele bicharoco no século 16 temos de admitir a hipótese plausível de se tratar dum verdadeiro leão-marinho, duma otária, Otaria jubata, dos mares do sul. Brehn, em sua Vida dos animais, disse que o leão-marinho, quando atacado, põe em fuga o homem mais corajoso, e o naturalista Steller, que lhe estudou os hábitos, conta que os canchadales tinham, em suas tribos, em alta estima os que já haviam matado um desses leões, por isso era prova da maior coragem.

Indicamos esta hipótese como plausível, porque é sabido que as correntes marinhas trazem e lançam sobre a costa meridional do Brasil, desde Rio Grande do Sul até São Paulo, cadáveres de pingüins e focas, entre os quais, às vezes, alguns exemplares vivos da fauna das regiões antárticas. Viajando no litoral, de Laguna a Torres, no Rio Grande, em 1935, vi, pessoalmente, dezenas desses cadáveres na praia do Soberbo. Nada há de extraordinário, portanto, na presença dum leão-marinho antártico vivo na de São Vicente.

Carlos Malheiro Dias aproveitou a luta de Baltasar Ferreira com a Hipupiara literariamente prum belo símbolo da colonização portuguesa do Brasil: Aquele adolescente São Jorge, prostrando com a espada o monstro que o arremete, é ainda o símbolo da vitória lusitana sobre o terror que emanava da terra virgem, das florestas obscuras e insondáveis, da ferocidade do arqueiro tatuado das selvas.

Gustavo Barroso
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Fonte: "Segredos e revelações da história do Brasil", Gustavo Barroso - Edições O Cruzeiro - 2ª edição - Agosto de 1961.

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