Ipupiara |
As formas
espantosas dos animais antediluvianos entrevistas pelos homens
pré-históricos nas cavernas geladas ou as suas ossadas imensas
encontradas nos pântanos causaram profunda sensação que, transmitida
através das gerações, deu, sem dúvida, origem a muitas das lendas de
bestas híbridas e horrendas. E todos os povos primitivos misturaram as
formas vivas da água e da terra nessa produção duma verdadeira fauna de
pesadelo, que velhos livros nos descrevem e antigos documentos
iconográficos nos apresentam pintados ou esculpidos.
Os chineses criam no grande
dragão Tatsmaki. Os hindus na imensa tartaruga Kusmaradja, na fabulosa
serpente Midgard, no bicho Saza, de cabeça de cobra, no Çafir, de bico
de águia e corpo de cão, na Çaga, de cara de milhafre e cauda de flor.
Os árabes himiaritas e nabateus no pássaro Roca e nas aves Homai. Os
cafres na serpente Manika, que bóia no mar como a dos escandinavos. Os
esquimós no Tupilek, que tem milhões de pés, de olhos e de dentes. Os
finlandeses no misterioso Herlihanem, que envenena o ferro. Os
polinésios no homem-porco ou porco-homem Tamampuá.
A lista é longa, variada e
apavorante. A ela concorrem os assírios com o sinistro Lahmu, nascido da
mistura de água doce e salgada, com homens-escorpiões, os
touros-alados, anjos-gafanhotos e deuses-peixes. Os gregos com
centauros, dragões, hidras, Quimera, Minotauro, górgonas, sereias e o
Campé, morto por Dionísio, que revolvia campos, devorava povos e
arrasava cidades.
Os egípcios com a Esfinge, a
Fênix e os deuses chacais, cinocéfalos ou gaviões. Os japoneses com o
Baku, que devora os sonhos, e o Raiboku, que ataca o raio e cai
despedaçado em chuva de pedrinhas pretas. Os cingaleses com o Daity-Mura
de cinco cabeças. Os judeus com o pavoroso peixe Leviatã e o Hud-hud,
pássaro de ouro que conversava com Salomão. Os africanos com o Kamapa,
tão grande que duma extremidade não se vê a outra, e o Seedinevé, que
engole aldeias inteiras. Os navegadores antigos com o Kraken, polvo
gigante12 que sugava navios e o peixe-bispo, que abençoava os náufragos
na hora da morte.
Os apocalipses, os volucrários,
os fisiólogos, os bestiários, as moralizações e os espelhos naturais,
nomes dados, geralmente, na Idade Média, a obras que traziam notícia ou
figura desses bicharocos tremendos, enumeravam monstros de arrepiar:
Capricervos, Caprimolgos, Capricórnios e Tragelafos, mestiços de bodes,
veados e serpes; Cepus, mescla de pantera, gazela e leão; Sarcófagos,
touros carnívoros; Crocotas, lobos e cães ao mesmo tempo; Dpsades,
Anfisbenas, Acôntias, Áspides, Cerastas, Fisalos, Ceprestas, Basiliscos,
Cítalos, Pancadas, Kesiduros, Enhídrios, Ascalábios, Ptíades,
Anerudutes, Sanglos, Rútelos, Estifos, Filolópios, Céncrinos, Amolotes,
Heláganas, Atélabos, Cicriodes, Selsiros, Onocrócalos e Coquátris,
espantosa série de répteis monstruosos, alguns que até zurravam como
jumento.
A fantasia humana não teve
limite na criação de tanta monstruosidade. Encontramos no estudo das
fábulas antigas, a cada passo, as bestas apocalípticas: Hipocampos,
hipogrifos, hipocervos, grifos, guivras, oquilis, unicórnios, rafos,
tarandos, salamandras, catopléias, cinamolgos, lumerpas, bonasios,
pastinacas, masticoras, senadios, mirags, saduzags e manhotes. Na
hagiografia cristã os animais fabulosos aparecem ao lado dos santos: O
dragão Cauquemar lanceado por São Jorge, a Tarasca aos pés de Santa
Marta, a baleia Fisetério conduzindo São Brandão, o lobo voraz de Gúbio
amansado por São Francisco de Assis e a gárgula dominada por São Romano.
Algumas dessas criações híbridas
representam verdadeiros símbolos. O que é o Falmante, leopardo que
estourava de gritar sem necessidade, senão a representação figurada de
certos indivíduos? O que é o Mirmecóleo (Mimercoleão), leão na frente e
formiga atrás, senão o emblema dos fracalhões, que roncam, aparentando
força que não possuem? O que é o Presteros, cujo contato tornava
imbecil, senão o retrato de certas pessoas e de certas épocas que
espalham a imbecilidade e a estupidez?
Entre os portugueses também
correu, quando revolviam mundos e mares na sede de aventura, a história
dum desses bichos apavorantes. A contou Fernão Mendes Pinto em sua
Peregrinação: Era avistado nos mares misteriosos da Indochina e se
chamava Caquesseitão. Tinha corpo gigantesco, carregado de compridos e
terríveis espinhos, e agitava à flor das ondas um longo rabo como de
lagarto.
Nosso Brasil, em seu amanhecer,
possuía um bicharoco desses, muito digno de se comparar ao Caquessitão
de Fernão Mendes Pinto e a quaisquer dos outros aqui anteriormente
enumerados. Na penumbra das primeiras idades de todos os povos sempre se
agitam formas larvares. Não podíamos escapar à regra geral. A espantosa
notícia nos foi dada por dois graves e sisudos historiadores. Um
forrado de saber teológico, frei Vicente do Salvador, o outro forrado de
saber gramatical, Pero de Magalhães Gândavo.
Escreve o primeiro, textualmente, no capítulo 10 de sua História do Brasil:
Na capitania de São Vicente, na era de 1564, numa noite saiu à praia um
monstro marinho, o qual, visto por um mancebo chamado Baltasar
Ferreira, filho do capitão, que se foi a ele com uma espada e o peixe,
se levantando direito, como um homem, sobre as barbatanas do rabo, deu
no mancebo uma estocada na barriga com a qual o derrubou e, se tornando a
levantar, com a boca aberta pra o tragar, lhe deu um altabaixo15 na
cabeça com o que o atordoou. Logo acudiram alguns escravos seus que o
acabaram de o matar, ficando o mancebo desmaiado e quase morto, depois
de haver tido tanto ânimo. Era este monstruoso peixe de 15 palmos de
comprido [3,3m], não tinha escama senão pele, como se verá na figura
seguinte.
Apesar desse se verá na figura seguinte,
nenhum desenho do monstro acompanhava o manuscrito de frade custódio e
não nos dá o nome do fabuloso animal marinho. Encontraremos, tanto esse
nome como a estampa em que vem retratado, em História da província de Santa Cruz, de Pero de Magalhães Gândavo, edição de 1575, a primeira, 11 anos posterior ao aparecimento da besta, que foi em 1564.
Gândavo assim a descreveu: Era
15 palmos de comprido e semeado de cabelo no corpo. No focinho tinha
cerdas muito grandes, como bigodes. Os índios da terra o chamam, em sua
língua, Hipupiara,16 que quer dizer demônio dágua. Alguns como este já
se viram nestas partes mas se acham raramente. E assim também deve haver
outros muitos monstros, de diversos pareceres, que no abismo desse
largo e espantoso mar se escondem...
Ao lado dessa descrição, a
estampa do monstro sendo atacado a espada por Baltasar Ferreira, na
praia de São Vicente: Hórrido aspecto antropomorfo e zoomorfo ao mesmo
tempo. Decerto era essa mesma figura que frei Vicente do Salvador
esqueceu de incluir em seu manuscrito, depois da haver citado. Nenhum
outro documento iconográfico se conhece sobre ele em nossa história.
O rapaz que se diz ter atacado e
matado a aterradora Hipupiara, segundo conta Pero de Magalhães Gândavo
no capítulo 11 de sua obra já citada, de nome Baltasar Ferreira, era
filho do capitão Jorge Ferreira, um dos companheiros de Martim Afonso de
Souza na fundação de São Vicente. Se casara com a mameluca Joana, filha
do misterioso taciturno e lendário João Ramalho, genro de Tibiriçá e um
dos fundadores de São Paulo. Se encontra essa filiação em Nobiliarquia
paulistana de Pedro Triques. Conta Hans Staden que um filho do mesmo
Jorge Ferreira, quando este era capitão-mor de São Vicente, em 1556,
fora morto e devorado a sua vista pelos índios. Não se sabe se era filho
natural ou legitimo. Todavia não podia ser Baltasar Ferreira, pois este
matou a Hipupiara em 1564, como depõem os historiadores a quem
recorremos.
Como se vê, o matador do monstro
marinho aparecido em São Vicente teve existência real e não é crível
que a lenda do próprio monstro não se estribe num fato verdadeiro. As
lendas são geralmente a fumaça ou as cinzas quentes da fogueira da
história. Procurando uma explicação aceitável à Hipupiara, uma nota na
introdução do terceiro volume da monumental História da colonização portuguesa do Brasil, aventa o seguinte: Se
trata, muito provavelmente, dum exemplar do lamantino da América,
vulgarmente conhecido por lobo-marinho ou leão-marinho, habitante da
região antártica.
Difícil é se encontrar em tão
reduzidas frases tantas cincadas em zoologia. O Lamantino, cetáceo
herbívoro e fluvial, é um manatídeo. O da Flórida e do norte da América
Meridional, que se chama, na Amazônia, peixe-boi, é o Manatus
latirostris; o do sul do Brasil é o Manatus inunguis. O leão-marinho
habita o oceano e não os rios como o peixe-boi. É uma otária, sendo que a
espécie antártica se classifica como Otaria jubata ou cabeluda. Gândavo
descreve a Hipupiara como semeada de cabelo.
Ora, nossos índios conheciam
perfeitamente o Lamantino ou peixe-boi e não o tomariam por um bicho
aterrador e fora do comum. Além disso, o episódio da Hipupiara se passou
na costa do mar, onde os manatídeos não freqüentam. Quando muito seu
aparecimento seria possível num estuário, com água ao menos salobra, o
que não é o caso da praia de São Vicente. Assim, pra explicarmos
racionalmente a presença daquele bicharoco no século 16 temos de admitir
a hipótese plausível de se tratar dum verdadeiro leão-marinho, duma
otária, Otaria jubata, dos mares do sul. Brehn, em sua Vida dos animais,
disse que o leão-marinho, quando atacado, põe em fuga o homem mais
corajoso, e o naturalista Steller, que lhe estudou os hábitos, conta que
os canchadales tinham, em suas tribos, em alta estima os que já haviam
matado um desses leões, por isso era prova da maior coragem.
Indicamos esta hipótese como
plausível, porque é sabido que as correntes marinhas trazem e lançam
sobre a costa meridional do Brasil, desde Rio Grande do Sul até São
Paulo, cadáveres de pingüins e focas, entre os quais, às vezes, alguns
exemplares vivos da fauna das regiões antárticas. Viajando no litoral,
de Laguna a Torres, no Rio Grande, em 1935, vi, pessoalmente, dezenas
desses cadáveres na praia do Soberbo. Nada há de extraordinário,
portanto, na presença dum leão-marinho antártico vivo na de São Vicente.
Carlos Malheiro Dias aproveitou a
luta de Baltasar Ferreira com a Hipupiara literariamente prum belo
símbolo da colonização portuguesa do Brasil: Aquele adolescente São
Jorge, prostrando com a espada o monstro que o arremete, é ainda o
símbolo da vitória lusitana sobre o terror que emanava da terra virgem,
das florestas obscuras e insondáveis, da ferocidade do arqueiro tatuado
das selvas.
Gustavo Barroso
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Fonte: "Segredos e revelações da história do Brasil", Gustavo Barroso - Edições O Cruzeiro - 2ª edição - Agosto de 1961.
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